1.
Estive pensando na recorrência com que se fala do desalento de perder o Carnaval, mas de como mencionamos menos o buraco que fica quando não se tem São João. Uma reflexão que, possivelmente, só valha para nós, os nordestinos. Já vi muita gente falar de sua preferência pelo festejo junino. Vi um post lindo comentando como o São João, por aqui, talvez tenha mais a atmosfera do Natal que a do Carnaval. (Arriscaria dizer que tem o melhor dos dois mundos.) Mas pouco vejo falar do amargo que é ficar de fora desse cenário, sem percorrer um céu de bandeirinhas, sem levar sustos com o pipoco dos fogos de artifício. A exceção, com certeza, é minha amiga Julia Arraes.
2.
Tomei parte, este ano, dessa grande angústia. Foi a segunda vez, em trinta e três anos de vida, que eu não vi uma fogueira no dia 23 de junho. A única ocasião em que isso havia acontecido foi em 2014, quando eu vivia em Dublin.
Passei muitos carnavais longe do fervo de que gosto. No início da vida, até a adolescência, a minha agenda carnavalesca era a dos meus pais, e eu era obrigada a pegar a estrada para a praia, na Paraíba, o que se tornou motivo de muitíssimas brigas e frustração em certa altura. Perdi Carnaval quando morava em Dublin, mas também em um ano que voltei da Europa direto para Barão Geraldo, onde não havia tubas nem trompetes. Depois optei, em sã consciência, por passar Carnaval na praia, em uma época que estava namorando. Teve também aquela fase já meio turva do isolamento social.
Perder o Carnaval não me parece ideal, mas já não diria que é algo grave. Vez ou outra, flerto em aproveitar esse feriadão em lugar mais arejado e com bebida gelada.
3.
Existe um agravante: eu faço aniversário na festa de São João. Existe outro agravante: meu pai amava São João. Quando criança, enquanto minha irmã fazia festas temáticas do Rei Leão e dos Power Rangers, todos os painéis decorativos do meu dia eram de fogueira, milho e crianças trajadas de matuto. Essa obrigação, naturalmente, gerou contrariedade em algum trecho da juventude. Eu queria que tocasse Mutantes e Novos Baianos no meu aniversário, mas logo meu pai perguntava por que não estava tocando forró. Afinal, era São João.
Hoje, com o ego bem estabelecido, sinto imensa honra de ter nascido diluída nessa festa. Meus olhos enchem de lágrimas ao buscar memórias de cada ano de vida celebrado com fogueiras enormes, vulcões que rasgavam a paisagem com um fogo bonito, mesa farta de comida deliciosa, decoração colorida feita com capricho e o cancioneiro de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Flavio José, Petrúcio Amorim.
4.
Perdi a festa, porém, por opção. Fui a São Paulo − local onde a quantidade de balão-multicor-que-lá-no-céu-vai-subindo contabilizada foi zero − por opção. Decidira participar de um conjunto de atividades com maestros da etnia Shipibo, povo da Amazônia peruana, nesse período em que celebro a minha vida. Estive em uma purga de tabaco e duas cerimônias de ayahuasca. A última e única vez que tinha bebido o preparo com a planta também havia sido com a Shipibo, seis anos atrás, em uma imersão em Aldeia, aqui mesmo na Região Metropolitana do Recife. O mesmo ritual com maestros diferentes. E uma Gianni diferentíssima.
Seis anos mudam coisa pra caramba.

5.
Encontrei com a poeta Marília Garcia em São Paulo para um café. Falamos sobre muitos assuntos. E falamos de luto. Ela, sobre a mãe que morreu há dois anos. Eu, sobre meu pai, que se foi há quase sete.
Perder o pai, perder a mãe, perder um irmão, perder um grande amigo, perder um filho, perder um cachorro. Perder alguém, para sempre, para a morte. Esse é um assunto que nunca acaba.
Na última sexta, dia 28 de junho, eu consegui ir a um show de Mariana Aydar e Mestrinho no Sítio Trindade, um polo junino aqui na capital pernambucana. Fiquei feliz de estar ali no meio do meu ritual mais constante. De não ter trocado, de todo, um ritual por outro. Chorei aqui e ali enquanto lembrava do meu pai. Era nossa festa. Foi um dos tantos gestos de fé que ele me ensinou.
Vê? Esse é um assunto que nunca acaba.
6.
Voltar à ayahuasca me fez ver o quanto estou na superfície. Sinto-me feliz por isso. A primeira vez que consagrei foi justamente no ano que se seguiu à morte dele. Eu estava acampada no submundo, fazendo o dever de casa do luto. Em terapia, eu me dava conta de como fazia tempo que eu estava ali, mergulhada naquele noturno. Talvez desde sempre. Eu comentava que não lembrava quando estivera lá em cima, de verdade, pela última vez, e que a sensação é de que nunca ia achar o caminho de volta.
Seis anos depois, cá estou. Com o corpo fora d’água, sentada na beira. É um bom momento. Mas aí, se você toma ayahuasca desde esse lugar, você pode ser arrastada por ela. Porque a planta não combina em nada com ficar na superfície.
7.
Tem uma coisa que disse para uma amiga que perdeu a mãe recentemente. O luto é uma grande oportunidade. É um trampolim. É um quebra-cabeça de dez mil peças. E eu realmente acredito nisso.
Há uma primeira caminhada duríssima, chão quente de pés descalços, farpas e espinhos a cada passo. Mas há algo novo e, com frequência, muito bonito que só surge do solo fértil de uma perda imensa.
Há sempre uma versão nossa que nasce a cada luto que enfrentamos. E essa é a oportunidade.
8.
Tem uma coisa que disseram na carona que peguei voltando da purga. Não foi para mim, mas tomei de presente. No carro em que quatro desconhecidas entre si perambulavam pela noite de São Paulo, uma delas, nem sei mais o seu nome, comentou como a planta nos aponta o sofrimento de que não estamos dispostos a abrir mão.
“Pronto, é só você soltar este sofrimento!”, a planta mostra.
E quantos, quantíssimos de nós, simplesmente não nos reconheceríamos se abríssemos mão do nosso sofrimento de estimação. Aquele sofrimento que dá sentido aos nossos dias, que sustenta retóricas e lamentos.
Às vezes, o luto se torna esse tipo de muleta. A desculpa para se afundar na não mudança e fazer a manutenção do sofrimento estruturante. Esse é o desperdício da oportunidade.
(E, como poucas coisas na vida, é pior que perder o São João.)
EXTRA EXTRA EXTRA
no meio de tudo que foi junho, não consegui disparar newsletters. aproveitei para dar uma olhada em alguns insights da plataforma, analisar o que está funcionando melhor, o que parece interessar mais a vocês. ah, agora já são mais de 300 leitores. pode ser pouco para métricas de redes; eu acho fantástico que tantes se interessem pelas minhas palavras ideias palavras de ocasião.
a partir de julho, a EFL passa a ser quinzenal, sendo mais realista com o tempo de quem escreve e de quem lê neste mar de conteúdos que se tornou nossa vida.
estou me planejando para ter conteúdo exclusivo para assinantes a partir do último trimestre do ano. não desistam de ser premium. vai valer a pena!
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Aos pouquinhos, a minha empresa de serviços editoriais e de conteúdo, junto ao meu sócio Diogo Guedes, vai ganhando vida digital. Apesar da flexibilidade ante a demanda, o foco é no modelo B2B, para atender projetos de empresas, instituições e organizações em geral. Nosso desejo é também o de fortalecer o mercado editorial do Nordeste criando ações diversas, por isso somos Lab. A nossa identidade visual é assinada pela designer Renata Cadena. Segue lá no Instagram se quiser acompanhar essa aventurinha.
PARCERIA
Uma escola, uma editora e uma comunidade. A Seiva é isso tudinho. E a newsletter agora tem uma parceria com o pessoal que tem colocado uns livros maneiros do âmbito da criatividade para circular, além de oferecer curso com nomes como Lourenço Mutarelli e Rafael Coutinho. Aos pouquinhos, vou contando para vocês serviços e produtos dessa turma. Mas, de cara, deixo a dica da newsletter com foco em cultura que eles enviam diariamente: a Aurora.
meus sinceros agradecimentos aos assinantes pagos desta newsletter: poliana castro, mário fellipe firmino, raquel galvão, rafael moura de andrade, luiza dantas, isabel cutrim & ingrid melo. muito obrigada por separar um cantinho na fatura, entre o netflix e o spotify, para apoiar o trabalho do pequeno produtor do entretenimento.
em breve, terei uma edição mensal extra só para vocês. paciência comigo.
ANTES DE IR
“só existe arte, e a cultura como a gente vê, no mundo ocidental, porque a vida é uma só. e ela acaba. então a finitude é uma coisa central em tudo que se produz em termo de artes.”
ele que é parte grande da minha formação profissional e literária e artística.