1.
A primeira vez que eu saí da casa dos meus pais foi para morar em Dublin. Eu tinha 23 anos, estava formada, tinha custeado praticamente tudo que dizia respeito àquela viagem (ao menos, seus primeiros meses, pois sabia que teria que trabalhar por lá), e ir ficando com os leprechauns era uma opção (uma amiga que embarcou comigo vive na Irlanda até hoje; casada, empregada). Entendo esse episódio da minha vida, devido a esse contexto, menos como um simples intercâmbio tardio e mais como “a primeira vez que eu saí da casa dos meus pais”.
Fiquei apenas um ano, e os motivos pelos quais voltei é um capítulo à parte. O que importa é: voltei para Recife, voltei para a casa dos meus pais.
No Brasil, cheguei sem emprego e quase sem grana. Havia viajado para o exterior um tantinho em fuga, abatida por um trauma, e, ao retornar, o drama me pegou em uma rasteira só. Mergulhei numa depressão violenta, a pior que já passei, pois não tinha entendimento do problema nem rede de apoio esclarecida nem capacidade de aceitação dos processos que vivia. O ano da volta foi 2014, a coisa ficou feia em 2015, e em 2016 eu bati em retirada novamente, dessa vez para fazer mestrado na Unicamp.
Em 2017, eu volto para Recife a contragosto, mas convicta de que precisava fazê-lo, afinal, meu pai estava morrendo, e eu queria estar por perto naqueles últimos meses. Morar com eles, àquela altura, no entanto, não era uma opção. Enfrentar a cidade e a doença já era dureza o bastante. Passei um mês no apartamento do bairro de Massangana, o mesmo que residira entre chegar da Europa e partir para Barão Geraldo, e segui para o primeiro CEP em que morei só na mesma cidade em que meus pais.



2.
Quando a gente diz “morar só”, no início da vida adulta, quase sempre a gente quer dizer “dividir com outras pessoas que não sejam os nossos pais”.




3.
É bastante curioso observar esse modus operandi do amadurecimento e do corte simbólico de cordão umbilical com a instituição papi-mami no Brasil. Observação: comento essa questão a partir da cidade do Recife, como já deu para notar, mas sinto que algumas considerações se estendem à lógica de muitas capitais. Outra observação: vou falar mal de macho, pois nunca é o suficiente.
Existem duas maneiras mais típicas de saída da casa dos pais: casamento & ir morar em outra cidade. A primeira, obviamente, é o curso mais estabelecido na sociedade, o esperado, o script. A segunda, geralmente aliada a uma demanda de estudo ou trabalho, é um curso facilmente justificável. Por isso, ir morar em outra cidade, muitas vezes, é a solução possível (e mais simples) para um desejo de individuação, autonomia, reinvenção de si. É, muitas vezes, a chance de se tornar adulto, criar uma rotina doméstica própria, experimentar longe dos olhares familiares (não só da família nuclear, mas também da teia social que já tem uma versão sua cristalizada). São muitas outras coisas também.
O fato é que, frequentemente, quando voltamos de outra cidade para a cidade em que vivem os nossos pais, voltamos a viver com nossos pais. Ou, mais comum ainda, pessoas divorciadas voltam a viver com seus pais.
Acho que não há nada demais nesse gesto enquanto transição ou administração momentânea de uma crise. Mas um mês de estadia é tempo mais que suficiente para a pessoa adulta se mexer e encontrar seu canto. Dois ou três, vá lá.
< Hoje eu tô a fim de cagar regra, paciência. >
4.
Há, é claro, uma dimensão inquestionável disso tudo: grana. & desigualdade social severa. & crise econômica braba. & preço de moradia exorbitante. Sim, sabemos. Mas quando escrevo sobre esse espinhoso assunto, confesso não estar com o olho voltado para as realidades em que a sobrevivência material de pais e filhos estão substancialmente enredadas devido a rendas irrisórias, devido a necessidades básicas. Essa é outra história, de outra natureza e complexidade.
Eu estou falando de nós (EU CHEGUEI LÁ, HEIN!): a maravilhosa classe média.
Eu estou falando da opção pelo estado de regressão que significa depender dos pais no nível da moradia para poupar o dinheiro do aluguel e não abrir mão de privilégios. Oh yeah, é uma escolha para uma galerinha. E, voilà, é sobretudo uma escolha para muitos... quem? Muitos quem? SIM: muitos homens!
Os increscíveis. Os inadultizáveis.
(MAS NEM TODO HOMEMMMMMMMMM. Só uns 90% quando o assunto é, novamente, a cidade do Recife.)



5.
Eu estou solteira há três anos.
Tenho circulado por aí.
Muitos homens solteiros com mais de 30 anos estão morando com os pais.
Muitíssimos homens solteiros com mais de 30 anos que moram só estão morando em imóveis que são dos pais.
Muitos homens solteiros não estão dispostos a pagar seu próprio aluguel com seu próprio salário e ter menos dinheiro e ainda o ônus do serviço doméstico que mamãe pode agilizar para ele.
Existem, é claro, os homens que estão casados; e, talvez só por isso, não estão morando com os pais.
E existem, pasmem, uma minoriazinha de homens solteiros que sabem que crescer é importante, que não regredir é importante, e que preferem dividir com outras pessoas adultas quando não podem custear um lugar só para si, e pagam seu aluguel, e não moram com os próprios pais.



6.
Ninguém aqui é inocente: muitos pais não querem que seus filhos ou filhas virem adultos. É um jogo de ganha-ganha.
Só que não.
7.
E as mulheres, Gigizinha?
As mulheres são, por excelência, indivíduos cuja vida está sempre sob ameaça de monitoramente, julgamento e controle. Não estou dizendo que o mesmo movimento de regressão não possa existir do lado de cá, mas a gente tem muito a perder nesse movimento. Também não estou dizendo que um filho homem adulto não dê satisfações aos genitores quando optam por ficar por ali. Mas é o mesmo cenário de quando se era adolescente: a expectativa sobre a vida sexual de homens e mulheres não é a mesma, o que é garantido em termos de liberdade para cada um não é igual.
[Consigo pensar agora em uma única amiga que voltou para casa dos pais algumas vezes sem ter sua autonomia significativamente abalada nesse movimento.]
A maior parte de nós, posso te garantir, está disposta a pagar o aluguel que for para ter sua autonomia radicalmente resguardada. Afinal, como se sabe, os únicos com legitimidade para saber com quantas pessoas nos deitamos são os nossos porteiros.
Moral da história: Se você é uma pessoa de classe média, pagar aluguel (ou as parcelas do teu próprio teto financiado num subúrbio) vai te fazer bem.
A segunda passagem tem como tarefa fundamental, portanto, a solidificação do ego através da qual o jovem reúne força suficiente para deixar os pais, ingressar no mundo maior, e lutar pela sobrevivência e pela realização do desejo. Essa pessoa precisa dizer ao mundo: “contrate-me. case-se comigo. confie em mim”. E depois provar que tem valor. Às vezes, na meia-idade, a pessoa ainda não deu os passos decisivos que a afastam da dependência e a conduzem ao mundo. Algumas ainda podem estar vivendo com os pais. Outras podem não ter força e o valor pessoal necessário para arriscar se envolver num relacionamento. Outras ainda podem não ter conseguido enfrentar as tarefas profissionais com a força e decisão necessárias. No caso dessas pessoas, o corpo pode ter cronologicamente chegado à meia-idade, mas seu kairós ainda é a infância.
James Hollin no livro A passagem do meio - da miséria ao significado da vida adulta
LISTAS DA SEMANA
15 itens que foram proibidos de entrar em Gaza por autoridades israelenses pelo menos uma vez de outubro de 2023 para cá
anestésicos
barracas e sacos de dormir
bombas de água
cateteres cardíacos
cilindros de oxigênio
cortadores de unha
croissants de chocolate
equipamentos de ultrassonografia
fio de sutura em kits de saúde reprodutiva
kits para teste químico da qualidade da água
muletas
paineis solares
frutas com caroço
ração para animais
ventiladores médicos
itens destacados de uma lista maior, apresentada na newsletter da editora Âyiné do dia 10 de maio de 2024, baseada em relatos das Nações Unidas e de outras agências de ajuda humanitária.

*
3 livros que marcaram minha formação leitora quando eu tinha (quase) nenhum critério para escolher entre isso ou aquilo (e sua edição exata)
MERCHAN
dropos de vida profissional
saiu a capa belíssima da antologia em homenagem a Sérgio Sampaio organizada por Jhenifer Silva e Leonardo Gandolfi, publicada pela editora Telaranha, neste mês em que se completou 30 anos da morte do compositor popular.
tô no meio de uma galera pesadíssima, com um poema visual. contribuir com esse projeto é uma alegria das grandes. aproveito e mando beijo pra Jhenifer e pro
, que também tem texto neste livro e sei que tá lendo aí do outro lado.a capa é da designer Larissa Ribas.
meus sinceros agradecimentos aos assinantes pagos desta newsletter: nicola sultanum, mário fellipe firmino, raquel galvão, rafael moura de andrade, luiza dantas. é muito significativo quando nosso conteúdo é reconhecido também dessa forma.
no segundo semestre, quero pensar em conteúdos exclusivos para vocês.
ANTES DE IR
Quando comecei a usar o Spotify, um dos primeiros discos que busquei foi o Estudando a Bossa Nova, de Tom Zé, que não está lá. Em tempos de desastres ambientais e fim do mundo, volto a esta música. Vai coração…