[contém ironia raivosa]
1.
Quem mora no Recife com certeza já presenciou uma situação assim: uma ação, fala ou gesto atípico, insensato, e alguém dizendo: “vou levar você para o Hospital da Tamarineira, viu?” ou “eita, esse fugiu da Tamarineira!”. Não quero, por hoje, pensar nessa tradição local pela via da banalização de uma intervenção ou internação. Por agora, eu quero falar da importância subjetiva e social dos habitantes de uma capital brasileira saberem que ali, em um bairro nobre, a loucura tem acolhida e existe.
O Hospital Ulysses Pernambucano (HUP), nome oficial desse símbolo da saúde mental da cidade, foi o segundo hospital psiquiátrico construído no Brasil, em janeiro de 1883. É um patrimônio histórico que surgiu sob administração da Santa Casa de Misericórdia e, em 1924, passou a ser gerido pelo estado, no governo de Barbosa Lima Sobrinho. Foi batizado com seu nome atual em 1981, em homenagem ao psiquiatra homônimo.
Hoje o Ulysses Pernambucano é a única emergência psiquiátrica 24h de Pernambuco, voltada para internações de curta permanência de adultos em estado de grave sofrimento mental. O hospital não possui pacientes institucionalizados; após a alta, eles são encaminhados para seguir com tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de seu município.
2.
Esta não é uma news das mais literárias.
Esta é uma news encaralhada e triste.
3.
Um hospital psiquiátrico cercado de verde em um bairro nobre. Eis a foto:
Até que demorou bastante para o poder público decidir “devolver” aquele entorno para a “sociedade” e possibilitar que mais pessoas (aquelas que são “merecedoras” do espaço público) usufruam dele. Talvez porque, em geral, os políticos desta cidade não sejam, historicamente, chegados a parques. E muito menos a árvores ou verde.
Mas eis que a nova gestão, sim. O fenômeno midiático e também prefeito João Campos adora uma praça, um parque. E, longe de mim ser contra esses equipamentos, eu também os amo e sou até entusiasta de um conjunto de ações de sua gestão. Por outro lado, o problema da incapacidade de diálogo com territórios diversos da parte das lideranças políticas segue em alta. E quando se é uma pessoa branca de alguma linhagem familiar que herdou o monopólio do poder institucional do Recife e de Pernambuco, aí a convicção de saber o que é melhor para o povo só aumenta.
A síndrome de colonizador que sabe o que é “bom” e o que é “mau” para todos.
4.
Certamente vai ter gente me achando muito mal comida para gastar uma edição criticando o Parque da Tamarineira. Uma ideia ótima dessas.
A verdade é que eu também acho que seja, a questão aqui é como (queria que tivesse efeito néon no editor) isso está sendo feito. Primeiramente, é claro, com um projeto que troca muitas árvores por concreto. Afinal, isto é Hellcife, we love concreto.
Costurando duas informações que já apareceram aqui: o parque é um projeto da prefeitura, enquanto o hospital é gerido pelo governo do estado. Logo, em segundo lugar, não dá para contar com o interesse dessas duas instâncias de construir propostas coletivas e democráticas juntas. Cada um está tentando fazer seu nome para as futuras campanhas eleitorais.
No meio disso, as pessoas em sofrimento psíquico. Sim, os loucos, os malucos, os lunáticos. Com toda aquela área verde só para eles, sendo parte de seu setting terapêutico. Uma ilha de verde, aliás, da qual todos usufruímos pelo seu efeito nesta urbe com temperatura de asfalto quente.
Mas a gente quer mais. E os usuários do HUP, essa gente deformada por fármacos, quem se importa com eles, não é mesmo?
3.
Recupero essa descrição da deformação por fármacos de um fotolivro que considero belíssimo chamado O infarto da alma, com imagens de Paz Errázuriz e texto de Diamela Eltit. Escrevi sobre essa publicação em 2020. Pensando agora, acho que é um dos livros que considero mais lindos na vida, levando em conta tantas páginas que já tive oportunidade de ler ou folhear. Narra a história de casais surgidos no hospital psiquiátrico chileno Philippe Pinel de Putaendo.
Um grifo do meu velho artigo, o qual é também link para quem se interessar pela leitura completa:
Politicamente, a potência desses indivíduos, juntos ou separados, é um soco na boca do estômago. O que é um louco internado em um hospício? O corpo desprestigiado, fora de circulação, cujo maior desmando, como aponta Diamela, não é a cisão da sua psique, mas a sua inviabilidade ao sistema produtivo e, consequentemente, sua renúncia ao consumo. Na estrutura capitalista, bem sabemos, estes devem ser eliminados: loucos, velhos, indígenas... Os que não movimentam cifras, não alimentam o e-commerce, não são rastreáveis por algoritmos. A esses, qualquer cercado, muitas vezes inóspito, concedido pela “caridade estatal”, deveria bastar.
4.
O espaço que cerca o Hospital Ulysses Pernambucano já é da sociedade e tem importância no tratamento dos seus usuários. Que dele se faça parque para ampliar suas possibilidades de uso, isso é uma maravilha. Porém, a expectativa dos profissionais do HUP é a de um espaço que seja de diálogo, que aproveite a chance de promover maior integração entre a sociedade e o debate de saúde mental; mas o que se ouve falar é apenas em pistas de skate e espaços gourmet. Sabemos que não vai deixar de existir uma emergência psiquiátrica no estado, mas onde ela vai funcionar? No mesmo casarão? Muito se falou da sua transformação em espaço museal. Há formas de fazer isso; os usuários, inclusive, produzem trabalhos artísticos em ateliês no complexo psiquiátrico. Ou será que o projeto vai alardear a história e o nome do local, e os usuários vão ser mandados para serem atendidos em algum lugar cinza, afastado, fora da vista dos recifenses?
Há denúncias sobre a alteração do projeto originalmente aprovado em licitação assim como de assédio por parte dos trabalhadores da obra em relação às mulheres em situação de sofrimento psíquico. Além disso, o HUP foi cercado, e os usuários já não podem ter acesso à área verde a qual estavam habituados.
A Prefeitura do Recife deixou o HUP com os flancos expostos, abertos. Podemos dizer categoricamente que estamos sendo despejados. O Sítio da Tamarineira é localizado numa das áreas mais cobiçadas do Recife. Então, o que é que os doidos e os doidos que cuidam dos doidos fazem lá, ora?!
Suzana Azoubel, diretora clínica do HUP em postagem no Instagram
É mais um capítulo da supremacia da razão, um estandarte que vem sendo passado de um século a outro, desde o início da modernidade, na forma desse desejo por uma “cidade moral”, que confina, que interna, que segrega, que violenta, que tortura, que esconde. Uma sociedade que teme a sua própria loucura e vive em função de estrangular os possíveis da subjetividade.
5.
Como estamos mergulhados nesta iluminada sociedade de consumo, me despeço dando a dica destas camisetas para quem quiser dar um close e conhecer o projeto Surto Criativo, que atua na difusão de obras de usuários da rede de saúde mental.




Aliás, dia 18 de maio é o dia da luta antimanicomial, uma luta (como tantas outras) que seria muito bom se fosse de todos. Ou, ao menos, de uma parcela maior da sociedade.
E não, não é publi.
LISTA DA SEMANA
4 apps que fazem parte do meu dia a dia
🤷🏽♀️ um app para organizar seus projetos e a lista de tarefas de cada um deles.
🗂️ um app para acumular links que
nuncaserão lidos mais tarde.🔍 um app para checar no mercado o quão problemático é aquele alimento industrializado na prateleira antes de colocar no carrinho.
🏋🏽♀️ um app para estimular sua galera a ir pra academia e registrar a evolução de cada uma juntinhas.
CLICK
drops de vida pessoal
Eu já morei com cachorro, já dividi teto e me relacionei cotidianamente com eles. Mas eu nunca cuidei nem de meio cachorro. De repente (mas nem tanto assim), somos nós três, eu tendo que aprender tudo em dobro. E comprar uma inacreditável quantidade de saquinhos para recolher cocô na rua. Desejem-nos sorte.
meus sinceros agradecimentos aos primeiríssimos assinantes pagos desta newsletter: nicola sultanum, mário fellipe firmino, raquel galvão e rafael moura de andrade. é muito significativo quando nosso conteúdo é reconhecido também dessa forma.
até o fim do ano, quero produzir um material exclusivo para assinantes pagos. já tenho o formato, falta-me tempo e um tico mais de capital. virá que eu vi.
ANTES DE IR
ter olhos de ver a beleza, ter escuta para ouvir as vozinhas
uma curiosidade é que o ulisses pernambucano era tio do joão cabral