1.
Fui para a Bahia nas férias. Chegamos por Salvador, conhecemos a Ilha da Maré e seguimos para praias ao sul da capital. Fizemos, na ida, o caminho passando pela área do Recôncavo e dormimos uma noite em Cachoeira. Verificamos por lá a atmosfera artística e politizada que envolve a pequena cidade, mas o que marcou de fato essa parada foi a queda que eu levei quando já estava pronta para deixar o local. Para ser mais exata, não foi queda, foi rasteira. Desci uma escada de concreto que sai do asfalto da orla na direção do rio ciente de que não podia chegar aos seus últimos degraus, tomados de lodo, já em contato com as águas. Fiz um cálculo errado e pisei na superfície deslizante. O celular em uma mão, a câmera fotográfica na outra, derrapei para dentro do rio tentando preservar os eletrônicos secos, uma missão bem-sucedida. Eu, no entanto, virei tênis encharcado, short cheio de lama e arranhões nas pernas e nos braços.
2.
A gravidade não diz, menciona ou dita, como Deus na forma de uma sarça ardente ditou a Moisés na montanha. A gravidade postula.
(Steve Paxton)


3.
A décima nona edição da newsletter de Daniel Galera foi sobre a queda, e o ponto de partida que o escritor usou para falar de suas práticas recentes com a dança foram suas memórias juvenis com a mountain bike. No livro Gravidade (n-1 edições, 2021), Steve Paxton — dançarino e coréografo, criador do método do contato-improvisação, que morreu no último 19 de fevereiro — escreve sobre a negociação com essa força que nos envia para baixo (ou para o centro) tão logo chegamos ao mundo. Andar e cair são aprendizados simultâneos no desenvolvimento da criança, que, como aponta o estudioso do corpo, amplia suas oportunidades de negociação com a gravidade à medida que se torna mais segura: árvore, patins, machucados.
Bicicleta.
Para Galera, a experiência coletiva em torno da bicicleta e dos tombos que ela propicia é um capítulo marcante dessa negociação:
[…] a queda era heroica se resultava de uma audácia testemunhada pelos outros, vergonhosa se resultava de uma hesitação no percurso ou de uma trapalhada, trágica se resultava de uma falha mecânica ou choque com um agente externo, como um carro saindo de uma garagem. Em todo caso, todo jovem ciclista da Esplanada almejava estar entre aqueles que sabiam "cair bem". Esse talento podia ser natural (há quem nasça com a desenvoltura corporal e o instinto necessários) ou adquirido (há quem aprenda técnicas ou evolua com o acúmulo de ocorrências), e tinha um aspecto prático (não se machucar muito) e outro estético. O aspecto estético sempre me fascinou. Um tombo glorioso possuía uma beleza plástica, algo de dança ou acrobacia, o corpo rolava minimizando o choque com uma fluidez cinética que podia fazer um observador suspirar e com um equilíbrio entre resistência e entrega que guardava um saber cobiçado. Todos nós caíamos. Alguns caíam bem. Eu caía mal.
4.
Eu também caía mal. E caía muito. Há algo nessa relação com a queda, com a confiança na inteligência do próprio corpo, que molda nossa vida adulta, seja numa perspectiva emocional e psíquica, seja no quesito físico e motor. Assim como com a bicicleta, a desenvoltura em muitas outras atividades depende da nossa disposição para negociar com a gravidade. Skate, capoeira, escalada indoor, ginástica artística. E, hoje acredito, quanto antes você se propõe a aprender a cair — com o corpo em primeira instância, não apenas as quedas simbólicas, que também derrubam o corpo à sua maneira —, mais cedo você flexibiliza certa tendência contemporânea à rigidez e ao controle. Em outras palavras: você aprende a dançar conforme à música.
No meu caso, o esporte que primeiro me ensinou a cair foi o judô, que devo ter praticado entre os sete e os nove anos de idade. Chutaria que boa parte das artes marciais iniciam instruindo rolamentos: posicionar antebraço na ida ao chão para fazer a base de impulso que te catapulta para frente preservando as articulações e reduzindo os danos. Tenho a lembrança de me apropriar bem desses movimentos e usá-los de forma exemplar no tatame. Fora dele, a cena sempre foi bem diferente.
3.
Gastar tempo e dinheiro no conhecimento da própria anatomia me parece tão produtivo quanto gastar no divã da análise. Sei que, como eu, há adultos que se ressentem pelas estrelinhas que não conseguiam dar na infância. Guardo a imagem nítida de uma amiga, vizinha de porta da minha avó, dando giros perfeitos no ar, com as pernas estiradas em V no momento da invertida e o pouso tranquilo no retorno à verticalidade bípede. Eu, muito longe disso, era famosa por joelhos ralados sem motivo, a garota que tropeçava nos próprios pés. Apesar da altura me equiparar com o grupo de crianças com o qual convivia, eu era geralmente mais nova e, de segunda a sexta, levava uma vida menos rueira que minha turma dos fins de semana do bairro de Jardim São Paulo. Era menos veloz, muito menos safa e extremamente desengonçada. Um dado corpóreo já dessa época são meus joelhos valgos. Também conhecido como perna em tesoura, trata-se de um mau alinhamento dos joelhos comum em crianças pequenas que tende a se autocorrigir após os sete anos de idade. No meu caso, o valgo nunca foi embora, o que impacta estabilidade, distribuição de forças e tendência à lesão ou desgaste.
Foram meus joelhos tortos os primeiros a me fazer entender que se arriscar na negociação com a gravidade, antes mesmo de ser sobre o aprendizado da queda, é sobre a confiança na própria base: os dois pés fincados no chão e a estrutura óssea e muscular que deles se elevam.
4.
Certa vez, acredito que no blog da Copa Paulo Francis e Copa Patrícia Poeta — evento jornalístico, etílico e futebolístico da graduação —, saiu uma honrosa montagem com foto minha em campo comparada a um suricate. Arranhou a autoestima, é verdade, mas me ajudou a ver mais elementos do corpo. Qualquer pessoa alta e magra, se não tiver uma boa estrutura muscular para sustentar o alinhamento de sua espinha dorsal, será um espetáculo do desencaixe. Por aqui, além de faltarem os músculos, há um pescoço bem dotado. No entanto, uma característica que só muito recentemente percebi me aproximar dos suricates é a munheca confortavelmente arreada. Fui alertada pela primeira vez dos meus traços de hipermobilidade e frouxidão ligamentar na ioga. As articulações de ombro e pulso tendem a envergar mais do que deveriam, e, novamente, a falta de músculos limita uma série de movimentos, pois essas articulações superiores tendem a se sobrecarregar e lesionar com facilidade.
Poxa, se o suricate que vos fala soubesse de tudo isso lá atrás, teria sido um pouco mais conformado com a falta de habilidade nas estrelinhas. E teria começado a puxar peso mais cedo.
O outro lado dessa moeda, porém, é que enquanto meu corpo desabava cada vez mais feio no pavimento de pedra irregular do condomínio da rua Leandro Barreto, eu começava a aprender a queda da literatura.
E aí eu caía bem.
LISTA DA SEMANA
6 músicas brasileiras sobre quedas e cair
Se meu mundo cair (Zé Miguel Wisnik)
Turbilhão (Ceumar)
Berimbau (Baden Powell)
Volta por cima (Elza Soares)
Não me quebro à toa (Luiz Melodia)
Me segura senão eu caio (Alceu Valença)
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o que vi, li e ouvi nas férias
não foi muito, a maior parte do tempo eu estava dentro d’água
🎧 Dois episódios do podcast Wiser than me, o com Jane Fonda e o com Fran Lebowitz;
🎬 Coda, um filme de estrutura bem clichê (&, para minha surpresa, vencedor do Oscar), que era exatamente o que eu precisava em um dia que eu precisava colocar choro para fora;
📖O engraçado e fragmentário Departamento de especulação, da escritora Jenny Offill;
📖& O que deu para fazer em matéria de história de amor, de Elvira Vigna (ainda lendo).
ASPAS
“A filha de uma amiga me ligou hoje de manhã dizendo que me traria um Iphone e que me explicaria como usar. Eu disse que não ter essas coisas não é um acidente. Eu sei que elas existem. É como não ter filhos: não foi um acidente.”
Fran Lebowitz em entrevista ao The New Yorker
ANTES DE IR
< & veio aí o conteúdo de férias nos moldes da rede social vizinha >