endless tema
Nunca esqueço o impacto que a leitura de Literatura brasileira contemporânea: um território contestado me causou, ali pelo início da década passada. A pesquisa de Regina Dalcastagnè, que escancara a hegemonia dos homens brancos de classe média em se tratando de publicação de livros e conquista de prêmios literários no cenário nacional, é ponto de partida para o debate da falta de diversidade nesse campo até hoje.
Mais de dez anos depois do seu lançamento, podemos dizer que o cenário mudou. No entanto, a sensação de que tenha “mudado muito” sem que haja um levantamento de dados rigoroso não passa disso: uma sensação. Indiscutivelmente, viemos /nós, sociedade / pautando muitos debates no que diz respeito à pluralidade de vozes. Porém, muitas pedras no sapato desse ímpeto democrático seguem a incomodar.
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Nos últimos anos, tive a oportunidade de acompanhar os bastidores de algumas premiações literárias do meu estado. Integrei o júri inicial do Prêmio Cepe de Literatura na categoria poesia em 2021; e estive na comissão do Prêmio Hermilo Borba Filho em 2022 e 2023. Hoje, como editora assistente da Cepe, participo do processo de realização do prêmio promovido por ela — desde as conversas referentes às estratégias de divulgação do edital, passando pela reflexão sobre a escolha dos jurados até chegar na etapa em que os livros selecionados entram em produção editorial.
Essa experiência tem me feito pensar bastante nas políticas públicas do estado voltadas para a literatura, pois as iniciativas que premiam originais inéditos, com frequência, reforçam o cenário hegemônico que citei no início do texto. São premiações de grande importância para motivar os escritores do estado (no caso do Prêmio Hermilo, de viés local) e do país (no caso dos prêmios da Cepe, de viés nacional), mas que esbarram em outros problemas estruturais.
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Voltei a esse assunto, por sinal, porque estava olhando umas informações sobre o Prêmio José Saramago, direcionado para autores que escrevem em língua portuguesa, e tive o total de zero surpresa ao me deparar com isto aqui:
De 13 premiados, apenas 2 mulheres; desse mesmo total, 8 portugueses, 4 brasileiros e apenas 1 escritor originário de algum dos países da África lusófona, que é formada por Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Há também, em cenário geopolítico ainda mais distante, o Timor-Leste.
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Não tenho quaisquer informações objetivas sobre como o Prêmio José Saramago se organiza nem de seus dados de inscrição ou perfil de inscritos no decorrer dos anos. Também não me dediquei suficientemente ao site para ver as informações sobre seu histórico.
Sei falar um pouco, entretanto, daquilo que chamei de “problemas estruturais” no contexto dos prêmios com os quais já tive contato (aqui quero dizer contato com seu fluxo de realização). E a grande barreira de partida é simples: os sujeitos subalternizados se inscrevem muito menos nesses editais.
Escrever e se inscrever, dois gestos que são brecados tanto pelas questões objetivas de sobrecarga desigual no contexto do capitalismo neoliberal (mulheres x homens; pretos x brancos; pobres x ricos / montem a combinações possíveis) quanto pelas profundas marcas causadas por uma sociedade patriarcal/racista/homofóbica/cisnormativa/capacitista/gordofóbica/e o quê mais?, que empurra essas/esses autoras/autores para a baixa auto-estima, a insegurança, o sofrimento, o medo e o silêncio. Enfim, empurram esses artistas para as gavetas junto aos seus originais.
Isso, é claro, quando eles arranjam tempo para concluir seus projetos criativos, soterrados que estão pela pilha de boletos, insegurança material, gerência da vida doméstica, cuidado com os filhos… «insira aqui qualquer outra demanda tradicionalmente mal distribuída entre sujeitos diversos da nossa sociedade»
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A valorização da literatura enquanto produção artística que fundamenta um ofício, que toma tempo, exige esforço, pesquisa e profissionalização, necessita de políticas públicas mais complexas, que pensem as condições de trabalho das escritoras e escritores. Ainda mais em Pernambuco, um estado do Nordeste, região na qual o mercado editorial é quase nulo, existindo sobretudo como resistência nas iniciativas bravamente realizadas por selos independentes.
meta para o ano novo (sim, todo mundo sabe que 2025 só começou em abril)
Recebi um e-mail da Universal [Pictures], e eles disseram: ‘Ei, você consideraria entrar no Instagram junto com o lançamento de Jurassic World: Recomeço?’. Recebo muita pressão para entrar nas redes sociais. [Isso me faz pensar]... há uma maneira de eu fazer isso e continuar fiel a quem eu sou? Não parecia que eu conseguiria. O trabalho que coloco no mundo é todo baseado na verdade. Esse é o ingrediente-chave. Então, se eu fosse uma pessoa que realmente gostasse de redes sociais, eu poderia totalmente embarcar nessa. Mas não sou. E acho que o filme vai se sair bem.
Ser a Scarlett Johansson do Nordeste. 🤡
pocotó, pocotó, pocotó, pocotó
Num dos últimos fins de semana de 2024, fui para Maracaípe com uns amigos, lá estávamos delirando com a nossa vida de vencedores da Mega da Virada, e aí rolou uma rodada de ‘qual-a-primeira-coisa-que-você-faria’. Depois de eles falarem, eu, tal qual uma participante dos pipocas do BBB, sem conseguir fazer download de uma gracinha mais própria do meu personagem, meti um sincero: compraria uma casa para tirar mainha do aluguel. E o choque de classe veio a galope.
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quem diria
Como disse meu querido sócio: quem poderia imaginar que colocar o Coringa no poder daria errado, não é mesmo?
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uma dica bonita
Aqui é para quem estiver procurando uma série que seja leve mas não idiota; com clima de inadequação e esperança ao mesmo tempo, em pleno Kansas. Alguém em algum lugar (ou Somebody somewhere no original) são aqueles 35 minutos de outsider para outsider.
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escrever à mão de parkinson
Quando fui diagnosticada com Parkinson, um sintoma particularmente pavoroso para mim foi que a minha caligrafia se desintegrou. Eu costumava ter prazer em escrever em cadernos, estantes deles, dia após dia, ano após ano. Agora os traços verticais se dobram ou se quebram ou vão em todas as direções, as vogais se encolhem como respingos, a inclinação perde seu ângulo suave e esperto, é tudo constrangedor. Ou, como Barthes diria, tolo. Eu desfaço parágrafos inteiros de vergonha.
Difícil descrever ou explicar a vergonha de uma caligrafia ruim.
Uma caligrafia ruim é feia. Parece meio tola. Eu ia dizer que parece inautêntica, mas então percebi que é justamente o contrário. Na sua atrocidade, minha caligrafia caótica parece revelar algo sobre mim que prefiro não encarar. Ela arranca aquilo que Gerard Manley Hopkins chama de inscape [uma individualidade essencial, forma intrínseca]. ‘Atenção ao homem cuja caligrafia balança como um junco ao vento’, Confúcio disse. A grafologia, como você sabe, é o estudo da caligrafia como traço de caráter. Difícil acreditar que não seja um bom traço.
Se minha letra se inclina para a direita, sou uma pessoa bastante influenciada pelo meu pai; se sou uma procrastinadora, coloco os pingos nos is um pouco à esquerda; se sou Hitler, tenho uma letra muito muito pequena e coloco os pontos nos meus is com uma linhazinha. E aqui está um fato interessante sobre mãos: quando uma pessoa paralisada do pescoço para baixo recebe uma ferramenta que lhe permite escrever com sua boca, ela reproduz o mesmo estilo de caligrafia de antes da paralisia. Sua caligrafia é seu cérebro e seu cérebro é você.
Mas o Parkinson bagunça tudo isso. Desliga certos genes nas células do cérebro, ninguém sabe por quê. Isso leva à diminuição dos níveis de uma substância cerebral chamada dopamina e a ritmos elétricos incomuns. Muitas ações físicas são inibidas ou mutiladas, como escovar os dentes ou escrever à mão. Mas a desintegração escritural é apenas uma imagem do começo de um colapso cognitivo cujos efeitos graduais incluirão desordem, descontinuidade, esquecimento, lacunas e fissuras, desacelerações e paradas.
de Anne Carson, no texto Atenção ao homem cuja caligrafia balança como o junco no vento
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drops da vida real






Adorei o texto, Gianni. Compartilho suas inquietações em relação aos prêmios e acho que estamos longe de uma mudança realmente estrutural a ponto de ver resultados nas listas. Sigo acreditando nas brechas, nas editoras resistentes que fazem um trabalho impecável e nas pessoas que lêem para além das listas de prêmios (e de vendas, porque não), mas acompanhar esses números realmente desanima. Espero que a gente tenha fôlego pra continuar no ofício (foi meu pedido de 2025, que também começou em abril). Adorei ainda mais que foi encerrando o texto com a indicação de Alguém em algum lugar. Essa série dá um quentinho no coração inquieto 💜
"Escrever e se inscrever, dois gestos que são brecados tanto pelas questões objetivas de sobrecarga desigual no contexto do capitalismo neoliberal (mulheres x homens; pretos x brancos; pobres x ricos / montem a combinações possíveis) quanto pelas profundas marcas causadas por uma sociedade patriarcal/racista/homofóbica/cisnormativa/capacitista/gordofóbica/e o quê mais?, que empurra essas/esses autoras/autores para a baixa auto-estima, a insegurança, o sofrimento, o medo e o silêncio. Enfim, empurram esses artistas para as gavetas junto aos seus originais."
Agora vc imagine um coordenador de literatura de ocasião ser responsabilizado por toda essa história...