1.
Ano passado tomei conhecimento de ter um hater dedicado, cujas indiretas destinadas a mim me chegam por amigos em comum. Não tomo nota se isso acontece publicamente porque não sigo a pessoa nas redes sociais — alguém que, como tantos outros, no andar da vida adulta, saiu do meu convívio. Embora perder seguidores nas diversas redes abale meu ego e minha química, sempre mantive uma relação de liberdade radical com o botão de unfollow. E quanto mais sou obrigada a ver um sem-fim de publicidade e “conteúdos sugeridos”, mais vou filtrando perfis que fui seguindo por conveniência ou trato social, na tentativa de que o feed me mostre as postagens que de fato me interessam. Não tenho muito pudor em dar unfollow — nem em voltar a seguir. Logo, ver o movimento de pessoas que seguiam a minha página voltarem a me seguir (depois de, obviamente, terem me dado unfollow em algum momento) é algo que não me incomoda. Existem uns perfis que já acompanhei e deixei de acompanhar inúmeras vezes, por se tratar de um conteúdo do qual quero estar mais ou menos perto circunstancialmente. Já fiz movimentos como dar unfollow em todas as contas de astrologia ou de lojas e marcas em geral. Suspeito que, numa dessas levas, dei unfollow no tal hater, e, talvez por isso, ele me elegeu como pessoa definitivamente detestável.
Não estou dizendo que eu não seja.
2.
Retirei-me do IG mais uma vez, pouco antes do carnaval. Desativei minha conta pessoal. Já fiz isso muitas vezes e de muitas formas: planejada, impulsiva, silenciosa, anunciada, mantendo perfil fake, ausentando-me por inteiro, para focar em algum projeto, para esquecer alguém, para desacelerar, por inadequação emocional e cognitiva. Esta última, sem dúvidas, é a razão que move minhas saídas mais tranquilas, conscientes e organizadas — sempre no sonho de um corte definitivo. Todos nós que povoamos o Instagram desde seus primórdios acompanhamos a rápida transição de diário pessoal para plataforma de conteúdo generalizado. Todo mundo que está por ali, buscando interagir e se integrar, por vezes entediado ou carente, já se viu eventualmente tentando ser um bom conteúdo para entregar algo — ou melhor, para receber algo. Mas, qualquer coisa que não seja unfollow, pelo amor de deus.
É o algoritmo seguindo sua marcha de moer subjetividades, e eu por lá, há anos, como barata tonta. Não lembro quando a minha relação com a rede deixou de ser espontânea, mas isso também já faz muito tempo. Uma neurose que é meu inferno e meu éden. Por um lado, a busca por compreensão do funcionamento e dos resultados da rede, na tentativa de gerar mais engajamento a respeito da sua vida, de si próprio, ou do seu trabalho, pode se tornar um motor perpétuo de sofrimento (a menos que você tenha ou seja um profissional exclusivamente dessa área, aí as questões têm outra nuance). Por outro, um corpo a corpo honesto pode te ajudar a entender por que você está no Instagram, se isso é mesmo bom para você e, finalmente, se você pode conseguir o que está buscando ali usando recursos menos danosos.
3.
– Existe um algoritmo em algum lugar que prevê “ei, para esse usuário, que agora é o indivíduo número 79B3 no experimento 231, achamos que podemos ver uma melhora no comportamento dele se você der esse estímulo em vez daquele”. Você faz parte de uma série de experimentos controlados que estão acontecendo em tempo real com você e com milhões de outras pessoas.
– Somos cobaias, então?
– Vocês são cobaias. São cobaias na jaula apertando o botão e, às vezes, recebendo curtidas. E eles fazem isso para mantê-los lá.
(Entrevista concedida, em 2017, por Ramsay Brown, fundador da startup Dopamine Labs — cuja função é desenvolver códigos de hackeamento cerebral para empresas de aplicativos — ao programa norte-americano 60 minutos)
4.
Tudo que me ocorreu — mais uma vez — antes de sair do meu Instagram pessoal:
a) minha necessidade intensa de interação e a tendência a ser esquecido quando sua vida não figura por ali (para isso, tem o mundo lá fora, o whatsapp, agora a newsletter, linkedin, e-mails, telefonemas & terapia)
b) minha vida profissional (não vejo relação direta, no meu caso, entre o fluxo de oportunidades de trabalho com literatura, escrita e editoração & tal rede social, ainda que faça falta o espaço para fazer um merchan dos próprios feitos; no trabalho com arteterapia, sigo considerando a ideia de manter um perfil de conteúdo sobre arteterapia)
c) minha vida de solteira (isso obriga uma pessoa a voltar para o instagram mais do que sonha a vã filosofia das pessoas compromissadas; aliás, tem gente que eu sei que está na pista só por ter voltado para a rede, e se tem uma hora que a dinâmica da moeda de si e da própria vida enquanto conteúdo vira um triturador de gente é nos joguinhos de sedução)
d) as fontes de informação e a agenda de cultura da cidade (para isso, perfil fake seguindo contas específicas, newsletters assinadas, podcasts e meia dúzia de sites salvos na barra de favoritos)
5.
Estive no Twitter, ativamente, de 2007 até o goverro Temer. Além da farra do algoritmo também ter chegado por lá, bagunçando a graciosidade do nosso passarinho azul, o custo da rede foi me parecendo alto demais. Definitivamente mais interessante que o IG, porém mais porosa e perigosa em seu modo de produzir discursos. Nessa saída, fui mais assertiva: deletei a minha conta. Ensaiei voltar uma só vez, não vingou.
6.
Entre nós e nossos hábitos digitais existe uma amarração social, emocional, comportamental, neuroquímica e prática. Daí que corrigir ou mudar algum deles exija algo além de força de vontade: exija também um pouco de organização, perda de ingenuidade, disposição para olhar essa amarração de forma distanciada. É terrível, afinal, às vezes tudo que a gente quer no fim (e no início, e no meio) do dia é só uma overdose de dopamina facilitada.
Em 2020, eu escrevi uma reportagem para tentar organizar as múltiplas crises que o smartphone, as redes sociais e a vida digital me causavam. Como sujeito que conheceu uma vida pré-smartphone, essa imagem de dois mundos cognitivos me assombra. Do mesmo modo que fiz com o Instagram, já me peguei muitas vezes pensando em como dar contorno ao uso do smartphone. Realizo pequenos esforços no sentido de deixá-lo em casa (quando sei como vou e volto de um determinado lugar/evento onde ele não será realmente necessário; alô galera do cardápio no celular, deixem disso) ou de não utilizá-lo no meu quarto.
Não são poucas as vezes que sou lida como fora da realidade, negacionista ou sonhadora quando aponto essa demanda, ou desejo, ou necessidade, de dar contorno ao espaço-tempo das tecnologias móveis de forma ativa. Aliás, achei irônica e sintomática esta postagem de Dani Arrais em 2024, uma das minhas entrevistadas para a já citada reportagem de 2020, que não me pareceu à época, posso estar enganada, ter curtido o recorte pessimista que propus ali — ou a falta dele, já que o texto vai em tantas direções.
O fato é que as empresas de tecnologia seguem prototipando e testando a adesão a modelos intermediários entre os atuais smartphones e os dumbphones de outrora. O fato é que as escolas dentro e fora do Brasil estão entendendo a necessidade de regulamentar o uso em seus espaços. Duas iniciativas em territórios bem distintos, uma do mercado e outra das instituições de educação formal, que revisam a relação mandatória ou tentam circunscrever os limites de uso do smartphone em certos contextos.
Eu não consigo, por exemplo, normalizar a ideia de que eu preciso ter ou estar com um smartphone para conseguir estacionar um carro em determinadas ruas da cidade. Sem smartphone, sem acesso ao espaço público?
7.
Por coincidência, enquanto escrevia esta EFL #2 , recebi a newsletter da Coolbox sobre liberdade cognitiva. O direito humano de decidir como nosso cérebro deve funcionar. O assunto vem ganhando mais espaço na mídia desde o ano passado devido ao cerco que se fecha em torno do TikTok e suas estratégias de design viciante, entre outros problemas de atuação. Além, é claro, da chegada sem retorno da IA generativa na nossa vida cotidiana.
Quem quiser ir mais fundo nessa história, deixo o link do artigo dos professores e pesquisadores Elena Gulyaeva e Flavio Farinella, cujo resumo diz assim:
Quando a manipulação da atividade cerebral humana é uma possibilidade real, como acontece atualmente, um mínimo de valores éticos deve ser respeitado e incorporado ao direito internacional e interno. Essas regras terão como objetivo regular a aplicação de neurotecnologias e inteligência artificial ao cérebro humano. Nenhum Estado que pretenda respeitar os direitos humanos pode exercer o poder de manipular coercivamente os estados mentais de sua população. Neste artigo discutimos a liberdade cognitiva, um novo direito nascido das neurotecnologias que também pode ser entendido como uma atualização do livre-arbítrio humano adaptado ao século XXI. É — como veremos — um conceito multidimensional, difícil de definir devido à sua complexidade. Propomos considerar a liberdade cognitiva como um direito humano inteiramente novo destinado a preservar a própria essência da natureza humana. Utilizamos uma metodologia qualitativa, que visa estabelecer a opinião de especialistas nas áreas jurídica e científica, juntamente com o auxílio das principais fontes do direito, nomeadamente direito positivo, jurisprudência e doutrina.
Palavras-chave: Direitos humanos. Neurotecnologia. Neurodireitos. Liberdade cognitiva. Ruptura legal. Inteligência artificial.
8.
Às vezes, esta newsletter é mais opinativa; às vezes, ela é mais informativa. Às vezes, ela é literária; outras, ela é literal.
LISTAS DA SEMANA
5 países que passam mais tempo na frente de telas (computador + celular)
África do Sul: 9 horas e 38 minutos
Brasil: 9 horas e 32 minutos
Filipinas: 9 horas e 14 minutos
Argentina: 9 horas e 1 minuto
Colômbia: 9 horas e 1 minuto
Quando se trata apenas do tempo na frente do computador, o Brasil cai para 3º lugar, com a marca de 4 horas e 4 minutos, atrás da África do Sul e da Rússia. Quando se trata apenas de uso do celular, o país permanece em 2º lugar, com a marca de 5 horas e 28 minutos, perdendo apenas para as Filipinas. Artigo sobre assunto clicando aqui a partir dos dados do datareportal.com.
3 leituras sobre redes sociais, smartphone e caos
A máquina do caos - como as redes sociais reprogramaram a nossa mente e o nosso mundo, de Max Fisher (Todavia, 2023)
Celular: como dar um tempo, de Catherine Price (Companhia das Letras, 2018)
The Battle for Your Brain: Defending the Right to Think Freely in the Age of Neurotechnology, de Nita Farahany (Hardcover, 2023, sem edição em português)
CLICK
drops de vida pessoal



ANTES DE IR
sempre em descompasso com o mundo das séries, terminei Succession logo depois do carnaval e morrerei de saudade de go full beast com Logan Roy. esse berro de “we will go full fucking beast” tem lugar cativo no meu coração, assim como a saída da negociação inicial com os Pierce: “would you like to hear my favorite passage from Shakespeare? take the fucking money!”
Excelente texto. Tendo trabalhado em empresas de social media por muito tempo, eu concordo muito com o quote de Ramsay Brown sobre todos os usuários serem cobaias. Fiquei fascinado também com a leitura sobre liberdade cognitiva, e espero que leis como a Lei dos Serviços Digitais da UE sirvam como precedente e sejam adotadas em vários países. A luta pela liberdade cognitiva começa com o nosso próprio detox, mas precisa ser abordada no nível de políticas sociais senão seremos sempre agarrados por tentáculos cada vez mais fortes nas nossas capacidades cognitivas. Obrigado por compartilhar, Gianni!