1.
[…]
13.
Logo que ficamos amigas, ela me contou que seus pais tinham morrido em um acidente aéreo, e ela tinha ido morar com a avó Gorete, única parente, muito velhinha, que fazia alguns meses, tinha morrido de infarto. Eu, que não achei nada interessante saber sobre uma velha que morre de infarto, quis mais detalhes sobre o tal acidente aéreo. Eu nem sabia direito o que era e nunca tinha conhecido alguém que tivesse andado de avião. Então ela explicou que acidente aéreo era quando o avião caía lá do céu, e perguntei “mas você não estava junto com seus pais quando o avião caiu?”, e ela respondeu “estava, mas eu sobrevivi”. E achei que ela era (apesar de azarada) uma menina muito sortuda.
14.
Toda criança órfã é uma criança abandonada.
15.
Um dia, encontrei a Lena no quintal, sentada no balanço sem dar impulso. Assim que cheguei, ela falou:
− Meus pais não estavam no avião.
− Não?
− Foi o avião que caiu em cima da minha casa.
− E você não estava na casa?
− Não, eu estava na escola.
Eu não disse nada, mas achei que (apesar de sortuda), ela era uma menina muito azarada.
[…]
2.
Ano passado, enquanto editava o livro 1+1 = 2 | 2-1 = 0, de Fernanda Caleffi Barbetta, caí nos encantos da protagonista Izinha, de 15 anos. No romance, ela vai contando [na forma de lista, sequenciando numericamente] os acontecimentos da sua vida, por orientação de um psicóloga, na tentativa de entender melhor a sua história até ali. Órfã de mãe, abandonada por uma tia distante em um abrigo, posteriormente adotada por uma família na qual se sente permanentemente deslocada, a infância e adolescência da personagem não correspondem muito bem àquilo que se entende por um cenário feliz. O modo como vai encarando sua pequena tragédia, porém, ácido e algo cômico, torna o livro engraçado e Izinha apaixonante.
3.
De um lado, o humor, a ironia, o sarcasmo, o cinismo: modalidades universais de sobrevivência, defesa, também ataque. De outro, a voz do personagem criança-adolescente, que escapa à crueza da violência pelas vias da fabulação, aqui tão convincente e bem lapidada, num livro que conversa bem com o público juvenil.
4.
Eu não acho que seja engraçado por usar chapéu. Além do mais, o engraçado é primo do feio, como diria a Cinteotl. O que eu sei, sim, é que sou macho. Por exemplo: não fico chorando por não ter mãe. Teoricamente, se você não tem mãe deve chorar muito, litros e litros de lágrimas, uns dez ou doze por dia. Mas eu não choro, porque quem chora é do maricas. Quando fico triste, o Yolcaut diz para eu não chorar, ele fala assim:
− Segura, Tochtli, segura como um macho.
O Yolcaut é meu pai, mas ele não gosta que eu chame ele de pai. Diz que somos o melhor bando de machos num raio de pelo menos oito quilômetros.
[...]
Uma das coisas que aprendi com Yolcaut é que às vezes as pessoas não viram cadáveres com uma bala. Às vezes precisam de três balas ou até de catorze. Tudo depende de onde você atira. Se você atira duas balas no cérebro, com certeza elas morrem. Mas você pode atirar até mil vezes no cabelo que não acontece nada, apesar de que deve ser bem divertido de ver. Eu sei dessas coisas por causo de um jogo que eu e Yolcaut costumamos jogar. O jogo é de perguntas e respostas. Um fala uma quantidade de tiros e uma parte do corpo, e o outro responde: vivo, cadáver ou diagnóstico reservado.
− Um tiro no coração.
− Cadáver.
− Trinta tiros na unha do dedo mindinho do pé esquerdo.
− Vivo.
− Três tiros no pâncreas.
− Diagnóstico reservado.
5.
Enquanto editava 1+1, lembrei-me do narrador de Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos. Tochtili é uma criança herdeira do narcotráfico mexicano crescendo em meio a práticas cruéis, mas explicitando essa experiência naquele tom entre ingênuo e fantasioso, o que leva o livro a também oscilar entre a sordidez e um certo nosense.
Novamente, não é difícil notar como o humor constrói uma camada de humanidade e de resistência, e como a inocência muitas vezes pode ser a responsável por imprimir essa espécie de comicidade ante o que, em termos práticos, não tem graça alguma.
6.
Essas duas obras me ocorreram nos últimos dias enquanto lia Pequeno país, de Gaël Faye. Aqui temos um menino de 10 anos, do Burundi, relatando a crise na sua família e no seu país, no contexto do genocídio de Ruanda. Ainda não terminei, e estou, sim, gostando, mas me chama atenção como a voz do narrador não me convence nesse lugar de infante. Há momentos em que a criança fala mais de perto, porém certa densidade melancólica e, sobretudo, as opções de léxico e sintaxe levam, de algum modo, o menino para longe.
À medida que o sol subia no céu, a temperatura aumentava, e o frescor da manhã se transformava numa umidade pegajosa. Meu pai andava à minha frente, silencioso, o suor deixava os cabelos dele sem brilho e encrespados debaixo da nuca. Dava para ouvir os gritos de babuínos ressoando pelas florestas.
7.
Penso que pese nesse livro a sua condição mais íntima, com aspectos memorialísticos do próprio autor. Enquanto as publicações de Fernanda Caleffi Barbetta e Juan Pablo Villalobos são ficções sem uma ancoragem pessoal-biográfica, o livro de Gaël Faye tem pontos de contato mais evidentes com sua vida, sua tragédia particular.
De algum modo, o adulto, escritor, também morada do trauma sobre o qual escreve (e aqui estamos no âmbito da guerra, do genocídio, do exílio), não dá conta de cruzar certos limites da fabulação nem consegue sugestionar muito alívio à aridez da realidade – por mais que seja visível a sua tentativa em vários momentos.
*
p.s.: Na tragédia dos meninos, na infância das masculinidades, com mais ironia ou mais melancolia, certo estrago do patriarcado sempre marca presença:
Furioso, meu pai apareceu de pijama listrado e me bateu na frente dos meus amigos por eu ter saído de casa tão cedo sem avisar. Não chorei, ou melhor, só deixei cair algumas lágrimas, provavelmente por causa da poeira levantada pelas derrapagens ou de um mosquito dentro do olho, não sei.
MERCHAN
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Dei uma entrevista sobre o meu livro novo, Cacto na boca, para o Leituras.org Para ler, é só clicar aqui.
Aproveito para lembrar que vai dar para comprar o livro a partir do dia 10.12 no site do Círculo de poemas e nas livrarias do país.
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parece uma besteira, mas mantém a chama acesa!
Oi, Gianni, que delícia ver a Izinha por aqui. Gostei das outras indicações tb. Beijos e muito obrigada.