1.
Quando lancei meu primeiro livro, minha mãe se emocionou muito com um poema que a fez lembrar da minha avó. Era um poema de amor, o que, se você foi formado pelas discussões de poesia do século XX, acaba sempre sendo um poema de amor pelas palavras. Não era, originalmente, um poema escrito para minha avó, e não existia pista íntima que pudesse levar alguém do meu convívio a tal convicção.
Fico imaginando que essa associação derivou da menção ao par de olhos verdes, mas já não recordo se falamos do porquê de ela ter feito esse elo.
Fato é que acho o poema mais bonito, e melhor, depois da leitura da minha mãe.
2.
Gastei muitas horas do meu mês de agosto conversando sobre o amor romântico. Pensando se não está na hora de elaborar meu puxadinho no campo da não monogamia. Esmiuçando as pulsões, as projeções, as carências que me movem (movem? moviam?) na direção das narrativas consagradas da parceria amorosa. Revisitando a minha total incapacidade para relações dessa natureza, o 1-1, eu por você e você por mim no mundo, a gente antes, nosso calendário e cotidiano irmanados como fluxo pré-definido de uma vida… Na equação entre liberdade e segurança desse pacto, no qual você faz pequenas concessões em nome de certa estabilidade e constância, a segurança nunca fez minha cabeça. O que, curiosamente, também tem mudado, e não sei bem como isso pode conviver com o que eu falei no início - a minha inaptidão e inconsciente desinteresse, embora o interesse eu tenha performado tantas vezes, para o script da vida de casal.
3.
É curioso: a pessoa ouve uma canção [que parece ser] de amor, a pessoa imagina um casal. Pior, a pessoa, com frequência (bo m, a pessoa sou eu, no caso), imagina um casal heteronormativo. Mas aí Mário me conta: “ah, sabia que essa música de Marina Sena, ela escreveu para a banda dela quando decidiu seguir carreira solo?”
4.
Fernanda, com quem eu morei por três anos, amiga querida que já vinha de um tempo de elaboração da não monogamia enquanto gesto, dentre outras cousas, político, respondia assim quando perguntavam se eu era monogâmica: “ela não é monogâmica nem não monogâmica, ela é terceira via”.
Bem se vê minha vocação de isentona marinista até nessa hora.
5.
Essa eu vi como trilha sonora de alguns casais. Vi em valsa de casamento. Aqueles olhinhos apaixonados, amigos nos quais vejo o total compromisso e grande habilidade para ir juntos até que a morte os separem.
Um dia, numa mesa de bar, não lembro como esse tema, o amor, a centralidade do amor de casal, veio à tona. O lugar dos outros amores, o modo como eles são ou deixam de ser cantados. O modo como nós percebemos ou deixamos de perceber que outros amores estão sendo cantados.
Thaís comentou da música do sonho de Nação Zumbi, que ela tinha sido composta a partir de um sonho que Jorge du Peixe teve com Chico Science. Eu ouvi essa música em looping quando cheguei em casa, e não há muito motivo para imaginarmos que é sobre um casal, mas a gente tá sempre forçando esse encaixe.
Seguinte: parece que é sobre amizade.
6.
Um dos motivos pelos quais também deslizo da lógica da monogamia, imagino eu, é que o tipo de vínculo da amizade me é mais caro do que o da família. E isso, provavelmente, se dá porque família pressupõe hierarquia interna e hierarquia (preferência, prioridade, predileção, sangue) em relação ao mundo. É segurança acima de liberdade. Talvez, a vocação para a horizontalidade dos afetos seja um dos meus traços mais radicais, e isso é, sem dúvida, bastante solitário.
Nesse sentido, hoje vejo que é mais valioso o elogio que diz que minha mãe e meus irmãos, por exemplo, são meus grandes amigos que o que diz que meus amigos são como alguém da família.
7.
Possivelmente por esse cenário, boa parte dos parceiros amorosos que tive são amizades que cultivo até hoje. Não é minha praxe dar a pole position da minha vida a eles; logo, quando o pacto erótico-amoroso acaba, eles também não são legados a um “não lugar”.
Uma vez, um parceiro amoroso que vinha ocupando grande espaço-tempo da minha vida e durava comentou algo sobre sermos melhores amigos. É, sem dúvida, ainda hoje, um grande amigo, mas não sou boa de enganação: “sai dessa, tem gente que está segurando a barra do viver comigo há muito mais tempo, mozão”.
7.
Essa eu não lembro quem disse, e, como todas as outras, não averiguei a veracidade. Não lembro a fonte dos relatores, acho que viram em entrevistas dos respectivos artistas. Talvez todas sejam histórias conhecidas. Apenas que, se você soube por aqui, e repetir daqui em diante, pode pôr na conta do “ouvi dizer”.
A de Caetano Veloso, hoje para mim parece tão fuckin obvious, é de uma mãe para um filho.
8.
Um exercício terapêutico cafona sim & constrangedor também, com potencial, porém, de desmontar por dentro os desavisados, é ouvir músicas de amor como se fossem declarações de nós para nós. É sintomático que uma sociedade individualista e egocêntrica seja, simultaneamente, um antro de indivíduos incapazes de amar a si próprios. Girar essa chave pouparia muito caos a nós todos.
Lembro de um pixo no banheiro de um bar em Barão Geraldo que dizia que “gente feliz não enche o saco”.
Vai, só hoje, coloca uma música de amor das boas, uma que funcione, ouve como se fosse de tu para tu mesmo. E vê que doideira.
Depois me conta.
(Aí eu te conto a minha.)
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