1.
Esta newsletter começa onde esta crônica termina. Recomendo que você leia lá o texto antigo e, depois, volte para este. Eu sei, é difícil mudar de abas e manter a rota; executar um passo a passo no aqui e agora das terras mágicas do digital.
Desculpe-me por isso.
2.
Escrevi essa crônica em 2021, quando já buscava estratégias junto ao meu endocrinologista para lidar com a tireoidite de hashimoto. Viriam então crises e mais crises <outras tantas vieram antes>, dores nas articulações, mas sem inchaços ou marcas evidentes, de um tipo vago, difuso, de um tipo que você não consegue apontar onde está doendo, e daí você apenas continua, se arrasta na sua típica rotina, enquanto vai perdendo a paciência, a sanidade, até que se rende - deita, chora e espera, sem saber quantos turnos, dias, semanas. Não é o tipo de dor que te vence por nocaute, mas por pontos infinitos.
Quando quero descrever esse terreno nebuloso, entre processos inflamatórios e episódios neuropáticos, o exemplo que se tornou mais eficiente foi o do zumbido. Imagine ter um zumbido no ouvido, que não para, por dias e dias. Um zumbido não tem exatamente o efeito de uma otite, mas, se persiste por tempo indeterminado, ele pode ir desregulando sua experiência auditiva a ponto do desconforto se tornar uma dor.
Neste momento, há um zumbido tátil no meu corpo que me consome há mais de 72h. E ele está ficando alto demais.
3.
Ao que tudo indica, a tireoide é uma bomba-relógio momentaneamente neutralizada. Mas, o útero… Ah… O útero e seus amigos.
Que turma.
4.
Há um pequeno ensaio de Virgina Woolf, editado pela Nós, no qual a escritora pontua certa escassez de narrativas de doenças na literatura. O texto Sobre estar doente foi publicado pela primeira vez em 1926. E, sim, creio que andamos escrevendo narrativas de doenças no último século.
O que me interessa, por agora, é a passagem a respeito do tema da intransmissibilidade da experiência, que Woolf comenta aplicando ao contexto das doenças e que vale como um lembrete desses esforços sempre precários, ainda que preciosos, do trabalho literário.
Pincei alguns fragmentos do livrinho:
Mas voltando ao enfermo. “Estou de cama com gripe”: o que isso expressa da grande experiência - de como o mundo mudou de forma; dos instrumentos de trabalho se tornando remotos; dos sons de festas se fazendo românticos como um carrossel que ouvimos à distância nos campos longíquos; e dos amigos que se alteram, uns assumindo uma beleza estranha, outros deformando-se e atarracando-se como sapos, enquanto toda a paisagem da vida se abre remota como o litoral visto de um navio em alto-mar […]
A experiência não pode ser transmitida e, como sempre ocorre com o que não se pode pôr em palavras, o seu próprio sofrimento serve apenas para despertar nos amigos lembranças das gripes deles […]
Mas compaixão não podemos ter. A sapientíssima Fortuna diz não. Se sua prole, já sobrecarregada pelo sofrimento, assumisse também esse fardo, acrescentando na imaginação outras dores além das suas, prédios cessariam de ser erguidos, estradas minguariam em trilhas tomadas por mato; seria o fim da música e da pintura […]
5.
A pessoa com dor tem dificuldade de não mencioná-la. Mencioná-la, porém, não soluciona a dor nem dá uma dimensão precisa ao seu interlocutor, e, de acordo com Woolf, ainda bem. Eventualmente a pessoa com dor muda de assunto. Mas não necessariamente porque algo mudou no terreno da dor.
6.
De 2017 a 2020, fui dada a muitas aventuras místicas. Rituais, terapias, processos. Diria que 2021 foi o ano do meu salto alopático, assim como de uma guinada pragmática do viver. Estávamos todos com a alma corroída, tentando escapar do coronavírus, e eu comecei a ver com bons olhos tudo que tornasse a vida mais fácil. Danem-se os efeitos colaterais. Indústria farmacêutica, aqui vamos nós.
Veja bem, eu ainda leio horóscopo, consulto oráculo, frequento religiões, evito ultraprocessados e me exercito sempre que possível. Mas sou igualmente devota de Dipirona 1 g e Rivotril 0,25 mg. Este último é, sem dúvida, o único chá de camomila possível para os que respiram o ar deste século.
CBD também é legal, vai.
7.
A dor arrasta convicções como um tsunami, daqueles que fazem uma cidade parecer uma maquete de isopor. Por mais que eu ainda me interesse por ciclos lunares e sua relação simbólica com meus humores, ando fazendo qualquer negócio para não menstruar. Nunca mais.
Quem me viu, quem me vê.

8.
No entanto, de todo esse processo, o que mais me intriga é uma face Pollyanna que me pego assumindo vez em quando. Ciclos de dor, além de serem ótimo material para resmungos, dão um sentido quase sublime a experiência do corpo sem dor. Voltar à condição de não sentir dor, tão óbvia para outras pessoas, se torna um episódio extasiante.
(Eu lembro da viagem de ano novo para a cidade de Piranhas, na virada de 2021 para 2022, quando eu constatei com algumas amigas que as pessoas da minha idade não acordavam com o padrão de dor que eu estava me habituando a acordar naquela época. Foi um bucado chocante. De algum modo, eu tinha me convencido de que aquela era uma sensação universal. E, enquanto descrevia o que sentia ao acordar para minha companheira de quarto, notei como aquilo era infamiliar para ela. Elementar, minha cara, Woolf.)
Junto a esse torpor que se instala no dia em que você acorda e percebe que seu corpo “voltou ao normal”, mesmo que temporariamente, há ainda (de novo, tal qual falei sobre a morte) uma espécie de oportunidade. É piegas, eu sei, mas é assim que, de fato, a situação bate para mim. Esta escritora que, aos poucos, vai virando uma mistura de coach motivacional com ensopado de analgésicos.
Se a experiência do luto, como comentei na EFL #8, me parece uma oportunidade para os que ficam, às custas do encerramento da fisicalidade de outrem, a doença é a conversa que estabelecemos com nosso próprio desgaste, é o custo da fricção entre o corpo e o mundo. E, crise a crise, dão-se os pequenos acertos de contas.
DIGA TRÊS
CLICK
drops de vida pessoal
meus sinceros agradecimentos aos assinantes pagos desta newsletter: aaron athias, ana célia melo, armando antenore, ingrid melo, isabel cutrim, luiza dantas, mário firmino, nathalia pereira, poliana castro, rafael moura e raquel galvão. muito obrigada por apoiar este projeto.
ANTES DE IR
Uma pedrada.
Não precisa soprar.
Me reconheço mais do que gostaria de assumir
Primeira news sua que leio (recomendada por Julio) e basicamente temos as mesmas condições de saúde (além do tino para escrita). 😅