1.
Li recentemente o livro que tempos são estes, da poeta norte-americana Adrienne Rich, lançado no Brasil em 2018 pela Jabuticaba. Na abertura da publicação, o editor e tradutor Marcelo Lotufo escreve: “Talvez fosse melhor que a sua poesia, sempre política e escrita para o presente, soasse datada e histórica, advinda de um passado já resolvido. A vitória seria de todos. Assim como a continuidade das injustiças retratadas, o fato de sua poesia continuar tão urgente é uma vergonha e uma derrota que precisamos confrontar”.
Adrienne escreve poemas assim (apenas o início de um deles):
2.
Esse apontamento de Marcelo me remeteu na mesmíssima hora a uma famosa entrevista do dramaturgo Plínio Marcos no programa de Jô Soares, em 1988. Na ocasião, quando o apresentador fala da atualidade da peça Navalha na carne, de 1967, o convidado é taxativo, com seu humor e acidez habituais: “A peça tem validade. Não por méritos da peça, é culpa do país que não evolui nunca. Então, a peça fica valendo... E se continuar essa situação que tá aí, a peça vira um clássico”.
3.
Eu li uma porção de peças de Plínio Marcos em uma disciplina do mestrado dedicada a ele. Fui parar nesse curso de Alcir Pécora ressabiada, pois quem é do circuito literário bem sabe quantas rusgas já rolaram entre Pécora e o contemporâneo. Foram, porém, aulas para lá de fantásticas, um cara que dominava a performance docente junto ao seu birô, que sabia animar o debate e que já vinha dando essa disciplina há um tempo. O corpo de baile estava afiado.
Lembrar isso tudo me fez ir atrás do meu caderno escolar de capa verde, um daqueles capa dura pequenos, com carinha de ensino fundamental. Na parte interna, meu nome, meu e-mail, o ano _ 2016.2 e o nome do autor estudado são os dados de identificação registrados por uma Gianni com bem mais colágeno e bem menos saúde mental que esta aqui. Tá valendo.
Na época, nós lemos sobretudo obras da primeira fase do escritor. Desde então, sempre que vejo uma situação que acho um pouco Plínio Marcos, sinto um terrível mal-estar e penso nele, é claro. A última vez foi uma confusão territorialista entre os flanelinhas na rua do centro do Recife onde o público do Teatro do Parque costuma estacionar seus carros.
4.
* a narrativa é lugar de disputa e defesa, quem fala mais está sob ameaça (Portuga, Tirica);
* o garoto como figura ex machina, desajustado ao contexto que é inserido;
* a lei da força ou do pragmatismo? Bereco não é apenas a força, mas o mínimo de racionalidade;
* o garoto como elemento metateatral, que toca a plateia e cria identificação, somos nós lá;
* a produção de mal-estar é um gesto político/acusatório diante das más consciências das classes altas.
5.
Os textos dessa primeira fase, que evidenciam sujeitos marginalizados (encarcerados, catadores de lixo, prostitutas), apostam na incapacidade humana de solidariedade em contextos precários. Nesse universo ficcional, o que o construto social promove, por excelência, é uma constante replicação dos mecanismos de exploração. E, ao fim e ao cabo, os seres humanos, mesmo os subalternizados, estariam sempre buscando aqueles que possam operar como seus subalternos. Trata-se de uma queda de braço, de forças extremamente desproporcionais, entre utopia e sobrevivência; trata-se da navalha na carne que é viver em um modelo social no qual, mais que o sonho, a tara, a meta do oprimido é, sim, tornar-se o opressor.
6.
Há, claro, frestas. Microfrestas. Um quase nada de luz que passa e logo se apaga.
7.
* “galeria de criaturas: ternas, líricas, truculentas, vadias, esperançosas, vitais em sua sobrevivência” > desejo de reconhecimento, de inserção;
* diálogo como lugar da ausência de solidariedade e não da compreensão;
* tão importante quanto a força é a capacidade de narrar > poder da intriga, do imaginário;
* a vizinhança, ainda que tenha situação similar, não representa olhar solidário, mas vigilância moral;
* é impossível dormir em Plínio Marcos;
* gesto violento contra quem está perto, não contra o responsável pela situação;
* não há caráter que supere as circunstâncias;
* convívio como princípio do contágio;
* a tortura é uma finalidade em si, o seu fundamento é a própria performance da tortura;
* afirmação de um lugar de mundo pelo rebaixamento do outro;
* uma sociedade subdesenvolvida, que opera por uma lógica irracional de exploração, não produz figuras heroicas, evoluídas ou morais.
8.
Não é muito animador, eu sei. Ainda assim, fiquei com vontade de reler Oração para um pé de chinelo. Acho interessante recordar - mesmo que muito vagamente - o modo como Plínio explora essa relação entre poder e palavra, em contextos nos quais poder não há: as disputas de quem fala mais, quem detém o direito de narrar, quem dá a última palavra, quem tem força para silenciar quem.
E ainda que tudo isso soe come um exagero pessimista, quando entrevisto pelos tópicos que selecionei do caderno de capa verde, não parece nada irreal quando se lê. É, aqui também, uma vergonha e uma derrota a ser confrontada, tal qual escreveu Lotufo sobre o livro de Adrienne Rich.
9.
Quem tiver com estômago para ir lá, recomendo - além dos textos originais, muitos deles disponíveis na internet - a adaptação que foi feita de Barrela para quadrinhos.
A identidade visual do Eu faço lista, novidade boa da edição, é assinada pela super super Larissa Ribas. Vão lá espiar o trabalho dela no behance.
DIGA TRÊS
CLICK
drops de vida pessoal
quem não tem medalha de ouro caça com bijuteria dourada.
meus sinceros agradecimentos aos assinantes pagos desta newsletter: aaron athias, ana célia melo, armando antenore, ingrid melo, isabel cutrim, luiza dantas, mário firmino, nathalia pereira, poliana castro, rafael moura e raquel galvão. muito obrigada por apoiar este projeto.
não deixem o sonho do conteúdo exclusivo morrer!!1
ANTES DE IR
O trailer deste documentário sobre a primeira seleção brasileira de futebol feminino.