Eu faço listas #1
leituras que não suportamos, discos do ano passado e ilustradores premiados
1.
Escrever e editar meus próprios textos é das combinações mais ansiogênicas que podem me ocorrer, e, por isso, nunca consegui sustentar um blog por muito tempo. Sim, esse é um mau presságio. É verdade que tenho trabalhado, prioritariamente, editando livros de outras pessoas. Isso é uma coisa. Também diria que sou uma jornalista muito fácil de editar, guardo pouco apego aos artigos implicados em transações comerciais. Isso é outra coisa. A experiência de desgaste — facilmente contornável, basta não fazê-lo —, porém, vem daqueles textos que ninguém te pediu para escrever. Textos como este. E todos os próximos que enviarei por aqui.
2.
Editar pode ser trabalhoso, mas não costuma gerar sofrimento (já lidar com escritores, isso sim desencadeia emoções negativas). Aquela tarefa dita invisível, de pouco reconhecimento, implica menos drama, menos riscos. Recentemente, Martha Batalha falou sobre isso na newsletter que divide com Caetano Galindo. Ela disse o seguinte:
Escrever é intimidador. Requer energia, disciplina, técnica, coragem para errar e para lidar com nossa parte não racional. É botar os dois lados do cérebro para trabalhar, em harmonia. Editar é tão mais agradável, por ser um exercício quase todo racional e de controle. Tem, é claro, algo de intuição, mas na retaguarda. É fundamental saber se editar, mas chega uma hora que a gente deixa de ver, né? E não importa o quanto a gente seja honesto conosco, a gente simplesmente não consegue mais ver no texto o que pode ficar melhor. E aí entra a figura da grande editora, ou editor.
Quando dou consultoria acadêmica, uma das coisas de que sempre falamos é como a mentalidade de edição pode interferir no processo de escrita. A preocupação em escrever e editar simultaneamente, como eu dizia no início, leva a um nó obsessivo que, no geral, paralisa boa parte dos pesquisadores nessa hora. Primeiro, a gente escreve. Depois, a gente edita. Dificilmente uma dissertação ou tese, textos densos, será bicho nascido de um parto só.
3.
Dito isso, passo àquela que deveria ser a ponta-paraíso da relação com textos e livros — ler. Não vou entrar no mérito da falta de hábito no país; partirei do princípio de que estou falando com leitores. Não “meus leitores”, mas com pessoas que leem e que desfrutam de algum prazer com essa prática. Por mais implicada que essa figura — o leitor — esteja na construção dessa experiência — e ele, nós, é, somos, implicados essenciais —, este ainda é um lugar privilegiado nesse baile. Ler, na esquemática dos gestos possíveis ante a linguagem, é o verbo do júbilo.
Esses dias, porém — ah, porém! —, na contramão do gozo, estive conversando sobre leituras angustiadas. Aliás, uma emoção razoável de ser produzida por qualquer obra — a angústia.
No último 31 de dezembro, decidi ficar em casa rendida à minha realidade de misantropa em noite de réveillon. Sempre me sinto um pouco deprimida à medida que a virada se aproxima. Prefiro dormir em meu horário habitual — algo entre 21h e 22h — para digerir a profunda exaustão — maior a cada ano — dos últimos doze meses, quieta. Surpreendentemente, acabei recebendo uma amiga no conforto do meu lar depois da meia-noite, e, dentre mil assuntos de uma intimidade de mais de 20 anos de convívio, falamos de alguns desses best sellers de hábitos, comportamento e neuropsicologia, os quais costumávamos aglutinar sob o termo autoajuda.
Ela contou que começou e parou de ler A coragem de ser imperfeito, de Brené Brown, muitas vezes. Que o livro a deixava ansiosa, que não conseguia encarar certos insights da pesquisadora de Serviço Social norte-americana. Como costuma ser esse tipo de best seller, a escrita é bastante simples e o argumento avança de modo reiterativo. Ele agrega elementos novos a cada capítulo, mas se repete, repete, repete. Ainda assim, o meu exemplar é todo anotado, um diálogo com ares de diário, e não é difícil entender por que leitores com histórico de autocrítica severa e perfeccionismo improdutivo decidem fechá-lo ante suas hipóteses, análises e resultados.
4.
Demorei seis meses para concluir Uma mulher singular (Todavia, 2023), de Vivian Gornick. Um livro curto, uma escrita ágil e humorada, com altas doses de melancolia. Certamente outros leram em uma tarde. Poderia justificar essa morosidade com a quantidade de originais para me dedicar no trabalho, com a adesão a outros livros no meio do caminho ou com a adição às redes sociais, que não só toma seu tempo como te deixa incapacitado para práticas de concentração exigente; eu poderia mesmo apelar para essas desculpas. No entanto, perto de encerrá-lo, compreendi que o problema foi travar uma identificação pouco bem-vinda com a narradora. Sabe quando você está tentando inventar outra versão de si e um livro te mostra o quanto você está enterrada em algo do qual talvez não consiga escapar?
5.
Como a minha amiga, eu tenho um livro que me faz hiperventilar. Li 86 das suas 176 páginas, e, neste momento, enquanto as folheio, uma ansiedade latente é ativada. A parte que foi manuseada está grifada ora de lápis, ora de caneta. Possui orelhas e páginas completamente dobradas. Alguns trechos destacados com lápis de cor azul. Quatro marcações com adesivos na borda.
Ser criativo - o poder da improvisação na vida e na arte foi escrito por Stephen Nachmanovitch, um violinista e compositor que enveredou por estudos em Psicologia. Quando releio os fragmentos grifados, dou de cara com algumas obviedades que ainda me afligem: “Uma pessoa pode ter fortes tendências criativas, gloriosas inspirações e elevados sentimentos, mas sem criações concretas não há criatividade”. Nesses casos, sem criações concretas não há nada além de um ego reabastecido de si e algum recalque.
Esse fragmento foi retirado de uma seção intitulada ‘Prática’, que integra o capítulo O trabalho. Lembro que foi aí que a leitura estremeceu. Na página 70, Nachmanovitch escreve:
No mundo ocidental, praticar significa adquirir técnica. Essa noção está relacionada com a ética do trabalho, que nos ensina a suportar a luta ou o aborrecimento hoje em troca de recompensas futuras. No mundo oriental, ao contrário, praticar é criar a pessoa, ou melhor, revelar ou tornar real a pessoa que já existe. Não se trata da prática para algum fim, mas da prática que é um fim em si mesmo. Para a filosofia zen, praticar é varrer o chão, comer, ou andar.
Para mim, segue sendo um livro difícil de atravessar, mas talvez seja o caso de tentar de novo em 2024. E de enviar newsletters como se varre o chão — mas minha casa costuma acumular sujeira — não é algo de que me orgulhe.
6.
Leonard e eu estamos sentados na sala de estar do apartamento dele, eu na cadeira alta de veludo cinza, ele no sofá de lona marrom.
“Outro dia”, conto para ele, “me acusaram de ficar fazendo julgamentos. Que piada, pensei. Você devia ter me conhecido dez anos atrás. Mas sabe de uma coisa? Estou cansada de me desculpar por fazer julgamentos. Por que razão não posso fazer julgamentos? Eu gosto de fazer julgamentos. Fazer julgamentos é tranquilizador. Absolutos. Certezas. Como eu gostava deles! Quero de volta. Não posso tê-los de volta?”
Leonard ri e tamborila nervosamente sobre o braço de madeira de seu lindo sofá.
“Antes, todo mundo parecia tão adulto”, digo. “Agora, ninguém mais parece adulto. Olhe só nós dois. Quarenta, cinquenta anos atrás teríamos sido nossos pais. Quem somos agora?”
Leonard se levanta e atravessa a sala; vai até um pequeno armário fechado, abre-o e pega um maço de cigarros aberto. Meus olhos o acompanham, surpresos. “O que você está fazendo?”, pergunto. “Você parou de fumar.” Ele dá de ombros e extrai um cigarro do maço.
“Eles passaram”, diz Leonard. “Só isso. Cinquenta anos atrás você entrava num armário chamado ‘casamento’. No armário, havia dois trajes completos, tão rígidos que podiam ficar em pé sozinhos. A mulher se encaixava num vestido chamado ‘esposa’, depois o homem se encaixava num terno chamado ‘marido’. E ponto-final. Os dois desapareciam no interior das roupas. Hoje, não passamos. Estamos aqui nus. Só isso.”
Leonard risca o fósforo e o aproxima de seu cigarro.
“Não sou a pessoa certa para essa vida”, digo.
“E quem é?”, ele diz, soprando fumaça na minha direção.
(Uma mulher singular, Vivian Gornick, pág. 32)
LISTAS DA SEMANA
5 discos lançados em 2023 que só este ano parei para ouvir com calma
Negra ópera, de Martinho da Vila - É um quase sacrilégio da minha parte só ter chegado nesse disco agora, mas estou ouvindo Exu das Sete & Acender as velas no repeat para compensar. (Aliás, já tem outra versão de Acender as velas, em álbum jazzístico em homenagem a Zé Keti, disponível neste início de 2024.)
Iroko, Omar Sosa e Tiganá Santana - Não conheço tanto o trabalho de Tiganá quanto gostaria, mas ano passado editei um texto dele e fiquei muito afetada pelo seu estilo. Esse disco, e essa parceria com o músico cubano, apenas ouçam.
Foutain Baby, Amaarae - Angels in Tibet foi uma música que eu ouvi muito, mas muito, no último semestre. O disco todo só agora. Gosto muito do timbre de Amaarae. E das batidas de cada faixa.
Mata grossa, Alzira E + Corte - Um disco que é um grito; seis anos depois da primeira parceria entre a cantora e os integrantes do Bixiga 70. Descobri recentemente que algumas canções, como Coiote, são parcerias com Tiganá (!) e que ele foi quem aludiu à Mata Grossa, referência e reinvento das origens de Alzira, que nasceu no Mato Grosso do Sul.
New Blue Sun, de André 3000 - Cheguei a ouvir o álbum de sopro introspectivo do ex-Outkast ainda em 2023, mas tenho escutado com mais calma de janeiro para cá.
5 ilustradores (dentre os 79) selecionados para a edição de 2024 do The Bologna Children's Book Fair
CLICK
drops de vida pessoal
Esses dias, dei um pirada tentando encontrar umas fotos que tirei com uma analógica da Nikon que me acompanha há mais tempo do que podia imaginar. Na nuvem, nada. Nos pen drives, nada. No notebook, nada. No HD externo, nada de nada. Memória perdida, cisma canceriana, mais uma receita para o inferno. Por sorte, encontrei o rolo do filme em uma caixa de quinquilharias do passado. Reescaneei tudo, e encontrei essa imagem da minha mãe com uns 4 anos a mais do que tenho hoje, em um registro de uns 16 anos atrás.
ANTES DE IR
um clipe do ano passado de um disco do ano passado
agora 2024 já vai começar.