1.
Essa conversa de Whatsapp com meu irmão, mais um dia normal na vida da família inter-racial.
2.
Quem me conhece, ou me acompanha de redes, sabe (ou intui) que a afirmação da minha condição de mulher racializada, não branca, negra de pele clara, tantas palavras para se dizer, se entender, é algo central no meu discurso há um tempo. Atualmente escrevo um novo livro de poemas, a ser publicado em 2025, com alguma sorte, que tem essa questão como eixo.
Embora de forma muito menos evidente, mais diplomática, muito pouco raivosa – certamente o Divertidamente que passa mais tempo controlando os botões aqui por dentro –, o é feito em círculos (2020, Edições Flecha), meu primeiro livro de poesia, já era sobre isso, a sua maneira. Assim como também já era um livro sobre silenciamento.
A forma como esses assuntos retornam, com mais fúria e a mesma devoção pelos debates teóricos, no que até agora não passa de um projeto, me faz pensar naqueles versos da poeta portuguesa Filipa Leal: “Os temas/ somos nós à procura da nossa solução”.
3.
Meu pai é o lado branco da família, foi menino criado em terras de engenho na cidade de Palmares, mas muitíssimo longe do conforto dos donos das terras. Minha mãe é o braço afro-indígena. Meu avô materno é o galho negro; minha avó materna é o galho indígena. Tenho a sorte de ainda conseguir estender essa narrativa até uma trisavó, e aí esbarro nas tragédias do nosso povo: o genocídio, a diáspora, a falta de documentação, a experiência traumática que silenciou os indivíduos e a transmissão de memória no interior de inúmeras famílias, o fomento do auto-ódio.
<< Imagine você como é, para meu Divertidamente da raiva, trabalhar na revisão de livros que narram a história dos herdeiros diretos e indiretos da riqueza dos latifúndios, que enchem a própria saga familiar de honrarias, feitos e bajulação, contadas desde a chegada a Pindorama. E uma coisa curiosa: ninguém mais tem escravizados na conta, os empregados das famílias-proprietárias de Pernambuco só começam a aparecer, aos montes, no pós-abolição. Interesting. >>
No terreno da minha família materna, eu fui a glória do embranquecimento, além de ser a primeira criança de uma geração. Eu fui A redenção de Cam para uma família pobre vilipendiada pelo racismo, de baixa atuação política ou envolvimento com a luta antirracista, ajustada ao Catolicismo, esmagada pela violência e pelas imposições de uma reinante subjetividade branca. Já para a minha família paterna, profundamente racista, eu era um grande alívio. Uma pele clara de cabelo liso. Praticamente uma branca, não é mesmo? 🤡

Minha mãe, cabelo crespo e pele escura, muitas vezes questionada se era minha babá. Muitas vezes, eu-criança questionada diretamente se ela era minha babá. Minha irmã, pele da minha pele, cabelo crespo. O cabelo que faz com que elas experimentem racismos cotidianos mais agressivos, mais variados e com maior recorrência do que os que cabem a mim.
A grande bênção da passabilidade alimentada por minha facilidade escolar, por oportunidades que caíram do céu e que, num primeiro momento, casaram com um pouco de talento, um pouco de estímulo, um pouco de sorte. E aí o encontro com o repertório certo, e aí mais facilidade. Que foi casando com determinação, com ambição, que foi abrindo caminho nos grupos brancos, depois em mais grupos brancos, em grupos brancos de classe média, de classe média alta. Em espaços da intelectualidade branca, do dinheiro branco, dos líderes e chefes brancos.
A grandissíssima bênção da passabilidade.
A grandissíssima ilusão da passabilidade.
A domesticação disfarçada da promessa de ser um deles.
4.
Como é mesmo que a Aline Motta escreveu?
PASSABILIDADE
habilidade de me tornar invisível
habilidade de ser tolerada
5.
Há uns meses tive um date com um homem branco, com porte de arma inclusive. Um profissional da lei. Um encontro pitoresco, antropológico, por que não dizer divertido. O elemento tinha voltado com a ex e “esquecido” de me avisar. Como o mundo é pequeno e o roteirista não gosta de tédio, eu tenho uma grande amiga em comum com o homem da lei e sua companheira. E ele, que não imaginava, entrou em pânico ao descobrir. (Recife é uma vila, mas, como eles são de outra cidade, o príncipe não esperava.)
Um prólogo desnecessário cuja função é elevar o risco de morte da autora desta news e relembrar a presepada que é o homem branco cis hetero e padrão. Ainda mais os que possuem arma por qualquer motivo.
Nessa noite, única e irrepetível, chegou-se ao tema racial. O homem branco da lei ficou obcecado com a ideia de eu ser uma mulher negra. Repetiu umas três ou quatro vezes na noite que eu era uma mulher branca. No dia seguinte, me enviou duas mensagens: um pedido para eu não vazar que era infiel, uma lembrança de que eu era uma mulher branca.
Enviei-lhe este texto de Sueli Carneiro, pois, apesar de raivosa, sou uma grande educadora, com certa paciência para didatismos.
A resposta, horas depois, foi:
“Não li ainda, mas você é uma mulher branca”.
É realmente uma pena que nem todos tenham a minha facilidade escolar.
6.
Ser vira-lata é, definitivamente, mais um assunto que não vai passar. Negra, não branca, racializada, parda. Um léxico para ser, um labirinto de si. Uma crise instaurada por uma branquitude que tem às claras seu lugar no mundo, que faz a mim, a meu irmão, hesitarmos ante uma política afirmativa ou ante um lugar que seja nosso.
Vira-lata, como diz o Mano Brown no episódio do Mano a Mano em que entrevista o presidente Lula. Vira-lata, como tatuei para me adiantar.
E é claro que você, o homem da lei e mesmo a banca avaliadora de um programa de cotas podem achar o que quiserem. Isso não muda nada.
DIGA TRÊS
AINDA A MORTE, E SEMPRE A VIDA
Mas esse grande mal-estar, tão repentino, possuía uma explicação?
Presenciara um incidente mortal. Um episódio que possivelmente contribuiu a desencadeá-lo. Tratava-se de uma mulher presa no seu carro que eu tentei socorrer. Mas já estava morta. Essa imagem me perseguiu. Ou melhor, se transformou em uma espécie de interrogação recorrente: como sair vivos de uma cilada que corre o risco de ser mortal?
Ou seja, como não se fechar para a vida mas deixá-la aberta ao menos à esperança.
É a consciência, como aprendi com a leitura dos Evangelhos, de que a morte não tem a última palavra sobre a vida.
(trecho de entrevista com o psicanalista Massimo Recalcati)
CLICK
drops de vida pessoal
meus sinceros agradecimentos aos assinantes pagos desta newsletter: aaron athias, ingrid melo, isabel cutrim, luiza dantas, mário firmino, nathalia pereira, poliana castro, rafael moura e raquel galvão. muito obrigada por apoiar este projeto.
em breve, terei uma edição mensal extra só para vocês.
ANTES DE IR
Este dueto sempre gracinha numa música muito gracinha.
Aguardo ansiosamente pelo lançamento do livro!
Gi! Que reflexão potente! Tu sempre muito precisa... obrigado pelos textos <3