I.
No final de 2023, quando me mudei para o meu atual apartamento, vivi um dilema entre ter uma rede ou ter uma mesa de jantar. O novo imóvel tinha umas boas dezenas de m² a menos que o anterior, e a realidade agora era uma sala pequena, de apenas um ambiente. Como eu já tinha uma mesa redonda de que gostava muito e estava sem rede, além de não haver suportes no cômodo de entrada, onde eu queria pendurá-las, optei por pensar o espaço com o móvel já existente. Para amarrar essa decisão, projetei a recepção de amigos e parentes – servir comidinhas, partilhar bebidas, conversar amenidades. E, de fato, isso aconteceu algumas excelentes vezes, como no réveillon desse mesmo ano (de 2023 para 2024) e no Natal de 2024, para ficar só em alguns grandes eventos.
Existe um fosso, no entanto, entre o que projetamos para nossa rotina & a rotina que de fato se instala em cada fase da vida; principalmente se as mudanças de fase vierem acompanhadas de mudanças de residência, como acontece comigo com frequência. A única casa em que tive hábito de receber bastante meus amigos foi a de Barão Geraldo, quando fazia mestrado na Unicamp e tentava puxar todos os afters de bar para lá. Mas não se tratava de uma dinâmica de mesa de jantar; eram cadeiras e estruturas improvisadas na área da frente da casa, que era grande.
No meu apartamento atual, a mesa da sala servia, sobretudo, de depósito de livros e outros objetos da bagunça cotidiana; tornava-se escrivaninha em alguns fins de semana por estar posicionada numa boa rota de luz natural – fazendo com que eu adiasse a organização do escritório –; e, sim, cumpria sua função maior nos cafés da manhã, refeição que eu costumo praticar como uma pessoa correta e tranquila quando meu ritmo pessoal está minimamente alinhado.
II.
Algo que aprendi mudando de casa tantas vezes, e dividindo esse espaço em condições variadas, é que uma casa precisa funcionar para quem vive nela. Depois de um ano instalada no atual endereço, uma prática que começou a se tornar problemática para mim foi a de comer na cama. Porque a televisão estava no quarto. Porque, no jantar, gosto de me poupar do barulho da minha mastigação solitária. Sem queixas, mas é fim de dia, eu mereço uma distração e estou disposta a negociar uma porcentagem do meu senso de presença vendo uma série espirituosa em vez de correr o risco de, numa mesa sem interlocutores, acabar buscando interlocutores onde? Sim. Você zap onde. (dsclp, foi mais forte que eu)
Por outro lado, a rede me fazia uma falta enorme. Algo que pode ser inexplicável e óbvio ao mesmo tempo, já que, na minha árvore genealógica, é só esticar o braço que eu chego no galho indígena, da minha bisavó de Goiana. A rede instaura uma experiência de descanso que eu não encontro em outro lugar da casa, mais contemplativa e menos obrigatória que o descanso ao qual a cama convida. Além disso, me dá outra opção de posição para ler. E eu preciso de muitas.
Embora parecesse evidente que eu devia me desfazer da mesa (não daria para conciliar espaço nem colocar na cozinha) e pendurar uma rede na sala, ainda me peguei hesitante. Em certo momento da adolescência, quando eu comecei a frequentar a casa de amigos onde existia o hábito das refeições com todos os familiares em volta da mesa, se alimentando juntos e partilhando as experiências do dia, aquilo me pareceu muito mais adequado (rs) e estruturador (isso, de fato, ainda creio que seja) do que a dinâmica da minha casa, na qual a tendência era cada um comer no seu tempo – a comida era posta, as pessoas se serviam, e uns comiam aqui e outros ali, uns comiam agora e outros depois.
Porém, para eliminar qualquer dúvida a respeito da superioridade moral (kkkkk é ironia, gente, calma lá) do meu balancinho na sala, comecei a disparar hipóteses sobre os aspectos conservadores (cof cof) da mesa de jantar. Será que a mesa de jantar não é um móvel mezzo colonial? Coisa de europeu? Será que a ~ correção ~ dessa rotina alimentar e dessa dinâmica não foi ditada por uma elite que come de um jeito e tem hábitos específicos, e que, assim como eu, ama colocar as camadas narrativas que lhes convém nesses hábitos? A mesma elite que adora fazer as famílias mais disfuncionais parecerem as mais adequadas (rs rs) e certo projeto ordeiro, sinônimo de harmonia e felicidade? Será que a mesa de jantar – com sua organização, seus donos das cadeiras de cabeceira, a postura que ela exige e o manejo de sei lá quantos utensílios – passaria no crivo de uma análise foucaultiana da domesticação dos corpos?
Eu sei que eu não precisava pensar em nada disso, bastava desmontar os pés de ferro e retirar o tampo de madeira. Depois furar as paredes, prender os suportes e pendurar a minha nova companheira. Só que eu vivo de escrever, então eu tirei esse assunto para ruminar.
III.
Colar a mesa de jantar a uma noção de autoridade me transportou para esta imagem do filme Lavoura arcaica (2001), adaptação de Luiz Fernando de Carvalho para o livro de Raduan Nassar, publicado originalmente em 1975.
Lavoura arcaica é, sem dúvidas, um dos romances mais importantes da minha formação, lido ali pelo final da adolescência, e uma grande narrativa brasileira sobre conflitos geracionais, doutrina, desejo e choque de valores. Na cena doméstica, com uma direção de fotografia dramática e cheia de contraste assinada por Walter de Carvalho, e um Raul Cortez magnífico na figura do pai severo, a mesa é o palco da contenção, que, no contexto da história, perde para a fúria dos desentendimentos. Esse fragmento do filme espelha bem o uso de tal mobília para fins disciplinadores.
A mesa de jantar com a parentada reunida funciona também como uma espécie de símbolo da hipocrisia doméstica no indigesto Festa de família (1995), do dinamarquês Thomas Vinterberg, o qual apenas me ocorreu agora, quando já estava fazendo os últimos ajustes deste texto, e acabei achando que valia a menção, ainda que rápida.
Mas, vejam, não me entendam mal. Eu adoro celebrar em volta à mesa – em casa, nos restaurantes, nos bares. Além disso, sei que existem mesas e mesas.
Em um livro delicioso sobre psicologia analítica de Gustavo Barcellos intitulado O banquete de psique, o autor escreve:
A mesa já foi declarada uma ‘metáfora da vida’. A mesa é igualdade ou desigualdade, é hierarquia ou simetria, pois é redonda ou quadrada – ou retangular e até oval. Quando redonda, é integração circular e concórdia, livre circulação de afetos, quando então não marca diferenças e hierarquias. Ou tem ângulos de tensão e oposição. Tem ou não cabeceiras, chefias, autoridades. Tem lugares marcados, rotina de posições, modos e etiqueta de mesa. Ou tem liberdade total de atitudes – espontânea, sempre posta, receptiva. Mesa da comensalidade, mesa do poder. Veste-se de pano, rendas, linhos, bordados, ou plásticos e papel. Ou está nua, expondo diretamente sua madeira, pedra, vidro, plástico ou fórmica. Veste-se de festa, veste-se de cotidiano. Na mesa celebramos agrupamentos, comunidades e associações. Nela brindamos e selamos contratos. Mesa de cozinha, mesa de copa, mesa de sala de jantar – que revelam níveis progressivos de intimidade e de convívio.
Seria não apenas injusto como completamente insano da minha parte querer pintar a mesa, coitada, tão cheia de experiências a oferecer, que tanto fez e tanto faz por nós, de vilã do lar. Mas me peguei pensando em como a falta de clareza de questões ancestrais, do fio maior da nossa própria história, nos faz pôr em xeque nossos hábitos mais cotidianos e banais. Porque se, por um lado, a minha rotina familiar não eram das mais estruturadas; por outro, nossos ritos de refeição e domésticos, de forma mais ampla, tinham outras especificidades, próprias talvez dos subúrbios, das classes populares, das matrizes afroindígenas.
Um aspecto interessante, por exemplo, é que a hora de dormir sempre foi o momento de partilha coletiva mais expressivo da família, a hora da contação das histórias rotineiras e imaginárias. Eu e minha irmã dormimos no quarto dos meus pais por muitos anos, apesar de termos nosso quarto. Quando passamos para ele, não era incomum ficarmos juntos conversando até o sono apertar e só então seguirmos para nossas camas.
É claro que Freud reprovaria. Um homem que levava os contornos da cama, da mesa e do banho bastante a sério.
(Seria um capítulo à parte a forma como sempre fomos capazes de tomar banho juntos ou fazer uso simultâneo do banheiro com muita naturalidade, mesmo depois da fase adulta ou na velhice do meu pai, também de nos vermos nus, o que explica minha razoável espontaneidade com a nudez na vida em geral. Seria um capítulo à parte as portas dos cômodos, apenas decorativas, não se batia antes de entrar, seria de grande estranheza se estivessem trancadas, o que significou um aprendizado radical da intimidade, da vida coletiva, e também a terrível negação da privacidade, da individualidade. Tudo isso seria um capítulo à parte, que ajudaria a entender porque o rito diário de refeição à mesa, todos juntos, não parecia fazer tanta falta no estabelecimento de laços. Talvez almoçar cada um no seu tempo e no seu canto fosse também um respiro.)
IV.
Há uma passagem do livro Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, ainda no início do calhamaço, quando a protagonista está com sua avó e sua irmã no porão de um navio negreiro, que teve sobre mim o impacto da sobreposição da memória coletiva com a memória individual. Diz assim:
Talvez tivessem nos deixado tantos dias sem comer para que, mesmo com raiva, ficássemos suficientemente fracos para não reagir. Estávamos com fome bastante para evitar qualquer problema que adiasse ainda mais a distribuição da comida, que era carne salgada, farinha e feijão.
Não saberia dizer quais as imagens que seriam capazes de me emocionar tanto quanto esta: a minha avó com uma tigela grande com farinha, feijão e charque desfiada preparando bolinhos com as mãos e distribuindo entre os netos, que corriam de lá para cá, brincando, ocupados com suas desocupações, e retornando para coletar bolinhos a serem comidos também com as mãos, é claro. Até a leitura desse trecho, nunca tive a clareza de que a minha iguaria de infância, exatamente ela, matava a fome dos escravizados, assim como foi tantas vezes a base das refeições da família da minha avó, muito pobre, e que daí vinha sua intimidade com esse preparo. Que não se servia na mesa de jantar, mas se distribuía como entradas do almoço, num jogo de espontaneidade entre a cozinha e as bocas, sem mediação.
Logo sigo para os nossos eventos de família e o nosso jeito de se reunir, quando o coração de tudo ainda era a casa de voinha, onde não cabíamos em uma mesa. Estou falando dos anos 1990, da primeira metade da década de 2000. Não sei se éramos muitos ou se o dinheiro era muito pouco para ter uma mesa grande o suficiente, em uma sala grande o suficiente. Fato é que os ritos de refeição passavam das panelas do fogão diretamente aos pratos, que seriam apoiados no colo das pessoas, sentadas nos assentos disponíveis ou mesmo no chão.
V.
O poema da escritora Ana Martins Marques que chama mesa diz assim:
mais importante que ter uma memória é ter uma mesa
mais importante que já ter amado um dia é ter
uma mesa sólida
uma mesa que é como uma cama diurna
com seu coração de árvore, de floresta
é importante em matéria de amor
não meter os pés pelas mãos
mas mais importante é ter uma mesa
porque uma mesa é uma espécie de chão que apoia
os que ainda não caíram de vez
VI.
Coincidiu de chegar até mim o resultado do World Food Photography Awards 2025 bem quando eu estava vivendo a jornada livre-associativa sobre a mesa de jantar. Antes de tudo, um apanhado de fotos maravilhosas. Muitas delas me ajudaram a ver com mais clareza como o rito de alimentação pode ou não passar pela mesa, e que nisso pesam escolhas individuais, mas também classe, tradição, contexto, condições. Como será que tem sido, para os palestinos, as refeições? Como ritualizar em meio ao horror?
Exceto os frames de filmes, todas as fotos desta postagem foram retiradas do site da premiação. Não deixem de conferir. Agora vou lá para a minha rede, procurar na internet uma mesa pequena que caiba na minha cozinha.
(Ah, e a televisão está na sala.)